Quantas pessoas podem dizer que passaram 24 anos de sua vida em uma mesma empresa? Quantas podem ter a honra de dizer que viveram desde momentos delicados aos mais gloriosos da história desta empresa? Mais do que isso, quantas tiveram tamanha competência e identificação para que sua imagem se confundisse com a do seu local de trabalho? Se trouxermos isso para o futebol, então, esse número é ainda menor. Quantos jogadores podem dizer que fizeram 1161 jogos por um mesmo clube?

A partir deste domingo (7), Rogério Ceni entrará para este seleto grupo. O goleiro, um dos maiores ídolos da história do clube, completa 24 anos desde sua chegada ao CT da Barra Funda para integrar o elenco do São Paulo. Um jogador que desafiou a lógica: fez dos pés um diferencial em uma posição onde se usa as mãos; atuando em uma posição tida como amaldiçoada, onde nenhum erro é perdoado, se tornou um mito quase intocável e imune à críticas; na era do "futebol negócio", criou um elo de identificação com uma agremiação futebolística que poucas vezes foi visto em nosso futebol.

Rogério Ceni pode não estar no auge de sua carreira como goleiro. Pode não ter a mesma mobilidade de outros tempos, a mesma competência ao sair jogando com os pés, ou mesmo a eficiência para bater faltas e pênaltis. Entretanto, mantém a mesma classe que sempre o acompanhou seja dentro do campo, seja fora dele, em entrevistas. Mantém o perfil de líder que entende que o papel de um jogador de futebol não é apenas jogar. E, por tudo isso, vê crescer a cada dia o tamanho de sua importância para a torcida Tricolor. Vê aumentar a sua imagem, cada vez mais emblemática e cada vez mais distante de "um jogador de futebol". Ele é muito mais.

A chegada de Mato Grosso: tragédia abre espaço no elenco de Telê

Rogério Mucke Ceni nasceu em Pato Branco, no interior do Paraná, em 22 de janeiro de 1973. Viveu a maior parte de sua infância, entretanto, na cidade de Sinop, no Mato Grosso. E foi lá que deu os primeiros passos, no time que carregava o nome da cidade. Como terceiro goleiro da equipe, não recebia qualquer tipo de ajuda financeira e completava o orçamento da família trabalhando em um banco.

Então com 17 anos, passou por uma peneira do São Paulo e foi aprovado para o elenco comandado por Telê Santana. À época, um dos grandes ídolos do time já se encontrava com as luvas nas mãos: era Zetti. Rogério era o quarto goleiro da equipe, não tinha chances nem no chamado "Expressinho", time de reservas que era comandado por Muricy Ramalho. E assim foi até 1992, quando uma tragédia começou a mudar os rumos de sua carreira.

Em julho daquele ano em que o São Paulo conquistou sua primeira Libertadores, o terceiro goleiro, Alexandre, morreu em um acidente de carro. Assim, Ceni foi alçado ao elenco profissional como terceiro goleiro. Titular absoluto do time de juniores, com quem seria campeão da Copa São Paulo em 1993, ele estreou no banco de reservas do time titular em uma partida do Campeonato Paulista, em 20 de agosto de 1992: um empate em zero a zero com o Guarani.

Em 1993, se tornou reserva imediato de Zetti e, consequentemente, titular do Expressinho de Muricy. A primeira chance apareceu em junho daquele ano, no Torneio Santiago de Compostela, na Espanha, quando o São Paulo bateu o Tenerife, também da Espanha, por 4 a 1, e Rogério defendeu um pênalti.

O time bicampeão da América e do Mundo tinha muitos compromissos (algumas vezes tinha dois jogos no mesmo dia), o que levou o Expressinho a jogar competições inteiras como time oficial. Foi o caso da Copa Conmebol de 1994 onde, com Rogério no gol, o Tricolor se sagrou campeão.

A titularidade e os primeiros gols

Em 1996, já com 25 anos, Rogério (ainda não conhecido pelo sobrenome "Ceni") se transformou no goleiro principal do São Paulo com a saída de Zetti para o Santos. O goleiro já havia se destacado pelas boas defesas, mas desde muito cedo apresentava um diferencial: a habilidade com os pés que era muito útil para iniciar jogadas com lançamentos longos para o outro lado do campo.

Diante do União São João, o primeiro gol da sua carreira

O que poucos imaginavam, no entanto, é que essa habilidade fosse usada não apenas para criar jogadas de gol, como também para marcar alguns. Em 15 de fevereiro de 1997, depois de alguns meses de treino, ele atravessou todo o campo do Estádio Hermínio Ometto, em Araras, para cobrar uma falta contra o União São João. O olhar de reprovação do técnico interino, o próprio Muricy, durou até a bola passar pela barreira e ir parar no fundo das redes. Era o primeiro gol da carreira de Ceni.

Logo, vieram outros. Paralelamente às boas defesas, vinham os gols. Até então, o único goleiro acostumado a balançar as redes era o paraguaio José Luis Chilavert, então com 32 anos e 30 gols marcados, a maioria pelo Vélez Sarsfield. Depois de superar os goleiros de Botafogo e Paraná, os dois primeiros gols no Morumbi, Rogério marcou pela primeira vez em um clássico no dia 28 de março de 1998. E logo em cima do Santos de Zetti... Foi o gol da vitória Tricolor por 2 a 1.

Foi no mesmo ano que ele conquistou o primeiro título com o time titular do São Paulo. Depois de bater na trave em 1997, o Tricolor se sagrou campeão do Paulistão de 98 em cima do Corinthians. E Rogério Ceni começou a ganhar de vez a admiração da torcida são-paulina que, ainda superando a perda de Zetti, encontrava novamente abaixo das traves, um ídolo. Em 1999, ele marcou o primeiro em um torneio internacional: contra o San Lorenzo, pela Copa Mercosul.

Tricolor em crise e afastamento

Rogério foi afastado pelo Presidente do São Paulo (Foto: Gazetapress)

O São Paulo iniciou o Século XXI da melhor maneira possível: com títulos. Já em 2000, o Tricolor faturou o Paulistão e, em 2001, levou o Torneio Rio-SP. O começo do novo milênio, no entanto, não foi dos melhores nem para o clube, nem para Rogério. De 2001 a 2003, a ausência de títulos somada a eliminações para rivais (Corinthians no Rio-SP de 2002, na Copa do Brasil do mesmo ano, no Paulistão de 2003 e Santos no Brasileirão de 2002) ou para times de menor expressão, como na Copa do Brasil de 2003, para o Goiás.

A paciência da torcida se esgotou, a crise chegou e até protesto com pipocas atiradas no campo, houve. Para Rogério, no entanto, o pior ano da carreira foi 2001. Já se destacando, sendo inclusive convocado para a Seleção Brasileira (foi o terceiro goleiro na campanha do Penta em 2002), ele naturalmente começou a receber sondagens de outros clubes, alguns do exterior. No meio daquele ano, o Arsenal manifestou interesse em contratar o arqueiro.

O Presidente da época, Paulo Amaral, acusou o goleiro de apresentar um documento falso, forjado pelo goleiro e por seu empresário, onde o Arsenal manifestava oficialmente o interesse em contratá-lo. Amaral acusou Rogério de usar o documento como arma para conseguir um aumento salarial. Nada foi provado até hoje, o goleiro conseguiu ser indenizado por quem o acusou de ter feito essa espécie de chantagem, mas, à época, Paulo não perdoou e afastou Rogério por 29 dias. Foi, talvez, o momento em que ele esteve mais "queimado" com a torcida. Ainda assim, não demorou a dar a volta por cima.

O ano de ouro e o recorde

Rogério na final do Mundial de 2005 (Foto: Getty Images)

Depois da crise no primeiro semestre de 2003, o São Paulo se acertou aos poucos. Em 2004, já disputou a Libertadores, caiu na semifinal, e brigou pelo titulo Brasileiro. Não foi campeão, mas havia a expectativa por dias melhores em 2005. E assim foi. Em mais um ano inesquecível para os são-paulinos, Rogério, aos 32 anos, viveu o auge de sua carreira.

No Paulistão, disputado por pontos corridos, o Tricolor passeou e foi campeão com duas rodadas de antecedência. Na Libertadores, o clube paulista caminhava bem e foi de encontro ao Palmeiras nas oitavas de final. No primeiro jogo, vitória por 1 a 0. No segundo, o Verdão começava a assustar quando os donos da casa, no Morumbi, tiveram um pênalti a seu favor. Rogério, que já havia marcado um gol no torneio, cobrou bem e encaminhou a classificação, sacramentada com um gol de Cicinho.

Nas quartas de final, contra o Tigres, do México, Rogério perdeu a chance de entrar para a história. O São Paulo fez 4 a 0 nos mexicanos no jogo de volta e conseguiu uma classificação tranquila, mas Ceni não saiu totalmente satisfeito. Ele marcou dois gols de falta no primeiro tempo e teve um pênalti na segunda etapa. Era a chance de ser o primeiro goleiro a marcar três gols em uma partida e ele desperdiçou, isolando a cobrança.

Com grandes defesas e um gol na semifinal contra o River Plate, Rogério comandou o grande time do São Paulo e se sagrou pela primeira vez campeão da Libertadores da América. Era so o início de um ano que o colocaria, definitivamente, entre os maiores goleiros da história do futebol brasileiro.

Em 14 de dezembro de 2005, ele mais uma vez fez história. Na estreia do São Paulo no Mundial de Clubes, Rogério se tornou o primeiro goleiro a marcar em uma competição organizada pela Fifa. E o gol foi fundamental, pois o São Paulo bateu o Al-Ittihad da Arábia Saudita por 3 a 2. Quatro dias depois, a missão era ainda mais difícil: bater o todo poderoso Liverpool, da Inglaterra, o campeão europeu.

O São Paulo encontrou o gol logo aos 20 minutos, com Mineiro e, a partir daí, o que se viu foi um bombardeio inglês. Foram 70 minutos de intensa pressão e de uma das maiores atuações de um goleiro na história do futebol. Com uma sequência impressionante e inacreditável de defesas dificeis, Rogério parou Gerrard e cia e garantiu o tri Mundial, sendo eleito o melhor jogador do torneio.

Foi a última Libertadores vencida por São Paulo e Rogério, mas nem de longe foi a última conquista. Em 20 de agosto de 2006, o São Paulo foi até o Mineirão enfrentar o Cruzeiro em uma partida pelo Campeonato Brasileiro. Era um jogo importante para o campeonato, mas a expectativa era mesmo para a possível quebra do recorde de Chilavert, já aposentado. Ceni já havia marcado 64 vezes, uma a menos que o paraguaio e, ainda no primeiro tempo, igualou e superou o pioneiro na categoria de goleiros que fazem gols. O São Paulo empatou em 2 a 2 e seu goleiro se tornou, isoladamente, o maior goleador da posição.

Tri brasileiro e o gol 100

De 2005 até 2008, levantar taças deixou de ser algo esporádico para Rogério Ceni. Com ele no gol, defendendo, e no ataque, marcando, o Tricolor foi tricampeão brasileiro entre 2006 e 2008, o que o transformou no maior campeão da competição se não unificarmos os títulos da Taça Brasil e do Robertão.

Houve, no entanto, momentos ruins e dolorosos. O maior deles, foi na final da Libertadores de 2006, contra o Internacional. Depois de uma grande exibição contra o Chivas, do México, na semifinal, ele viu o São Paulo ser derrotado em casa no primeiro jogo da final, 2 a 1. No jogo de volta, ele falhou no primeiro gol do Inter. Em um cruzamento simples, soltou a bola nos pés de Fernandão. Aquele gol, mais tarde, faria a diferença no empate em 2 a 2 e daria aos gaúchos o título inédito no torneio Continental.

Meses antes, ele havia jogado como titular pela Seleção Brasileira nos minutos finais da partida contra o Japão, pela fase de grupos da Copa do Mundo. Foi sua última passagem pelo selecionado nacional. Pelo São Paulo, contudo, continuou brilhando e sendo peça fundamental das conquistas do time. Nos anos seguintes, ele ainda ficaria, em algumas oportunidades, afastado do elenco titular por conta de lesões.

Aos poucos, a boa fase do Tricolor acabou e os títulos não mais vieram. Em 2011, porém, ele mais uma vez entrou para a história. Desde o início do ano, crescia a expectativa pelo gol 100. Considerando os dois gols em amistosos não-oficiais, ele havia marcado 95 vezes no final de 2010. Os gols contra Mogi Mirim, Linense, Portuguesa e Paulista de Jundiaí no Paulistão, o levaram a 99.

Em 27 de março de 2011, São Paulo e Corinthians se enfrentaram em Barueri pelo Paulistão. O São Paulo vencia por 1 a 0, já no segundo tempo, quando surgiu uma falta na intermediária. A torcida pediu e lá foi ele, que havia vazado o Timão apenas duas vezes na carreira. Rogério partiu, bateu por cima da barreira e Julio César não alcançou. Era o gol 100 em cima da maior rival. Para quem insistia em dizer que era o 98, por conta dos dois em jogos não-oficiais, o centésimo veio em cima do Bahia, pelo Brasileirão, em 4 de agosto do mesmo ano.

Os últimos anos: crises, título internacional e anúncio da aposentadoria

A partir de 2010, o São Paulo voltou a se afastar da briga por títulos de grande expressão. Em 2010 e 2011, o máximo que o clube conseguiu foi chegar às semifinais da Libertadores, novamente eliminado pelo Inter. Em 2012, em mais um ano que não parecia ser dos mais promissores, o Tricolor engrenou na Copa Sul-Americana e foi campeão.

Nesse jogo, Rogério mais uma vez mostrou porque é tão ídolo. Era a despedida do garoto Lucas, craque do time na temporada e que havia sido vendido ao PSG. Na comemoração, após o anúncio do W.O. do Tigre-ARG, que não voltou para o segundo tempo alegando ter apanhado da PM que trabalhava no Estádio (o jogo estava 2 a 0 para o São Paulo e a ida havia sido 0 a 0), ele não titubeou: passou a faixa de capitão para Lucas e deu a ele a honra de levantar a taça.

Em 2013, aconteceu de tudo. Após uma eliminação traumática nas oitavas de final da Libertadores, o clube chegou a ficar na lanterna do Brasileirão e Rogério, que não tinha um relacionamento dos melhores com Ney Franco, acompanhou a chegada de Muricy salvar o clube do rebaixamento.

Em 2014, outro ano que de altos e baixos, ele anunciou a aposentadoria ao final da temporada, pondo fim, assim, a sua trajetória no clube, que ainda pode ser coroada com um título Brasileiro - o Tricolor está atualmente na terceira posição -, ou da Sul-Americana, onde o time já está nas oitavas de final. Fora das quatro linhas, ele ainda é um dos líderes do Bom Senso FC, movimento de jogadores que cobra melhorias na estrutura do futebol brasileiro.

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