Quem se fiou na exuberante exibição-relâmpago do Benfica diante do Estoril, surgida nos últimos vinte minutos da partida, certamente analisou a prestação benfiquista com o coração e não com a razão: durante setenta minutos, o Benfica passeou uma inconsistência colectiva incontornável, mascarada por quatro golos que tiveram o condão de transformar uma exibição horribilis num ápice de futebol ofensivo, aparentemente eloquente e vertiginosamente eficaz. Mas a regra fora, demarcadamente, os setenta minutos de dislexia táctica.

A dura realidade estava retratada sim, nas sistémicas fragilidades tácticas do Benfica durante aqueles setenta minutos (em que Júlio César foi o salvador, com defesas que permitiram manter o nulo) e não na fase final da partida, na qual o Estoril quebrou e um cruzamento certeiro de Gaitán encontrou a cabeça do avançado Mitroglou, para, finalmente, desbloquear o resultado. E essa conclusão apenas foi corroborada pela exibição inconsistente, débil e insuficiente exibição dos encarnados diante do estóico Arouca.

Sem ainda ter consolidado uma ideia de jogo fundamental, que oriente os restantes princípios técnico-tácticos, o futebol das águias reflecte a desorganização colectiva que impera na equipa, fruto, aparentemente, da transição do comando técnico (de Jesus para Rui Vitória) mas também de uma pré-temporada sinuosa que dificultou o trabalho do novo treinador da Luz. Balançando entre o seu preferido 4-2-3-1 e o velho 4-4-2 implementado por Jesus, Vitória ainda vive numa indefinição táctica que é transparecida no relvado.

É notório que o futebol encarnado se faz de solavancos sem ligação coerente, e nem mesmo os posicionamentos defensivos são executados com a coordenação e coerência exigidas - as linhas actuam imensamente afastadas na hora de defender e suster as movimentações adversárias (transição defensiva) e não existem, ainda, mecanismos tácticos de preenchimento dos espaços na altura de cobrir a troca de bola do oponente e as suas derivações/desmarcações (principalmente diagonais).

No 4-4-2 que Rui Vitória tenta reciclar (herança de Jesus), não existem ainda rotinas tácticas na coordenação entre o sector defensivo e o meio-campo: Pizzi e Samaris (o «duplo-pivot» que actuou diante do Arouca) nunca foram capazes de preencher o espaço entrelinhas, ficando impreterivelmente distantes da linha recuada e permitindo que os jogadores do Arouca caissem no espaço vazio. A coordenação entre os laterais e os centrocampistas não tem sido, também, capaz de suster as progressões oponentes, faltando, em última análise, solidez posicional do colectivo na articulação entre o bloco central e a indefinição do posicionamento - flutuante - da defesa.

No ataque, o problema mais notório prende-se com a indefinição/desadequação de Jonas e Mitroglou às exigências laboriosas do 4-4-2 delineado, durante vários anos, por Jorge Jesus. O sistema, que obriga a uma complementaridade de esforços (na largura e profundadide do futebol encarnado) assinalável e a permanentes variações posicionais (máxima dinâmica), fica coxo, ineficiente, amorfo e estagnado quando não existe uma mutual cooperação entre avançados móveis, trabalhadores e versáteis. 

Ora, sem Lima (elo mais dinâmico da ligação com os extremos e centrocampistas) e com Jonas deslocado para as funções do compatriota transferido, os mecanismos ofensivos do 4-4-2 de Jesus simplesmente não funcionam; para piorar, a utilização de pontas-de-lança fixos, estáticos e sem poder de movimentação alargada que aumente o raio de acção do ataque (Mitroglou e Raúl Jiménez) apenas vem tornar mais previsível a manobra ofensiva do Benfica. Rui Vitória, que ainda precisa de tempo para fixar a sua ideologia táctica, está, agora, num limbo, entre o 4-4-2 para o qual não tem jogadores apropriados (quem se assemelha a Lima?) e o 4-2-3-1 que poderá anular Jonas.

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