Alto, magro e leve, Matthias Sindelar é o grande nome da história do futebol austríaco. Não só pela sua habilidade e classe dentro de campo, que lhe rendeu os apelidos de “Homem de Papel” e “Mozart do Futebol”, mas sim pela sua audácia. Marcado pela sua agilidade e o controle de bola, além da malícia e da ginga de um grande craque, o atacante será sempre lembrado pela sua coragem de desafiar o nazismo, o Reich e Adolf Hitler. Sindelar ganhou títulos importantes, participou da Copa do Mundo de 1934 e faleceu sob circunstâncias misteriosas em 1939, amargado por ver seu país anexado ao regime nazista. Conheça mais sobre esse grande craque no "Mexendo no Baú" desta semana.

O começo no futebol

Matthias Sindelar, batizado Matěj Šindelář, nasceu em 10 de fevereiro de 1903 na cidade de Kozlav, no antigo império Austro-Húngaro. Com descendência tcheca, Sindelar se mudou cedo para a capital, Viena, e foi apresentado ao futebol. Com apenas 14 anos, o futuro craque austríaco teve que lidar com a morte do pai e foi obrigado a assumir a chefia da família. Trabalhando como serralheiro, Matthias foi capaz de conciliar o controle da casa com a sua paixão pelo futebol. Como não possuía uma bola de couro, Sindelar montava a sua própria bola – normalmente com trapos – e participava de partidas pelas ruas da capital.

Em pouco tempo, Sindelar ganhou notabilidade em Viena, devido a sua habilidade e maestria com a bola nos pés e, aos 16 anos, chegou ao Hertha Viena, equipe local aonde fez duas temporadas como o grande destaque das categorias de base. O desempenho excelente nas categorias inferiores fez com que o atacante se transformasse em titular da equipe principal com apenas 18 anos. Ainda no começo de sua carreira, o craque teve uma lesão grave no joelho, mas conseguiu superar e se destacou com a camisa do Hertha, tendo chamado a atenção do principal clube do país, o Austria Viena.

A chegada ao Austria e a fama nacional

Sindelar chegou ao Austria Viena no ano de 1924 e não demorou muito para cair nas graças dos torcedores da principal equipe austríaca. Com uma habilidade impressionante para marcar gols, Matthias conduziu a equipe ao título do Campeonato Austríaco de 1926 e ao bicampeonato da Copa da Áustria, em 1925 e 1926. Em 1926, após a conquista das duas competições nacionais, Sindelar foi convocado pela primeira vez para defender a seleção austríaca e rapidamente se transformou em garoto propaganda de diversas campanhas publicitarias, desde laticínios até relógios de marca.

Entretanto, nem tudo foi um mar de rosas para Sindelar naquela década. Preterido pelo técnico da seleção à época, Hugo Meisl, o atacante viu o Austria Viena passar por um momento conturbado no Campeonato Austríaco, lutando contra o rebaixamento ao invés de lutar por títulos, como esperado. Seria apenas na década de 30 que a história de Sindelar e da seleção austríaca começaria a mudar.

A criação do Wunderteam

O começo da década de 30 foi maravilhoso para Matthias Sindelar e para a seleção austríaca. Depois de ganhar a confiança do técnico Hugo Meisl, o atacante virou figurinha carimbada nas convocações e, junto com a proposta de jogo ofensiva do comandante, ajudou a Áustria a conquistar façanhas memoráveis. Com o seu craque em campo, a equipe nacional ficou 14 partidas invictas entre abril de 1931 e dezembro de 1932. Neste meio tempo, a seleção austríaca conquistou a Copa Internacional da Europa Central de 1931-32 e teve vitórias épicas, como o 8 a 1 sobre a Suiça (com um gol de Sindelar) e o 2 a 1 sobre a Itália, com dois gols do Homem de Papel. Em oito partidas disputadas, foram quatro vitórias, três empates e uma derrota, com 19 gols marcados e apenas nove sofridos.

Além de Sindelar, aquela equipe contava com nomes como Smistik e Nausch, ícones do estilo de jogo de toques rápidos e precisos, baseados na doutrina de Jimmy Hogan, treinador inglês, precursor dos ensinamentos táticos no Velho Continente e parceiro de Meisl. Os grandes rivais do Wunderteam naquela época eram os italianos e as partidas eram, normalmente, muito equilibradas e históricas, como uma vitória por 4 a 2 dos austríacos em plena cidade de Turim.

Um dos destaques da equipe italiana naquela época era o zagueiro argentino naturalizado italiano, Monti. Segundo conta a história, o defensor tinha raiva de Sindelar por ter que ser o seu marcador, devido à grande habilidade do atacante e a dificuldade em marca-lo. Monti, inclusive, teria pedido a Vittorio Pozzo, técnico da Azzura na época, para ficar de fora de uma partida contra a Áustria justamente para não ter que marcar Sindelar. “Quando eu vejo Sindelar, fico louco da vida!”, teria dito o zagueiro.

Além do título da Copa Internacional da Europa Central, o Wunderteam atropelou outros adversários fortíssimos em amistosos antes da Copa do Mundo de 1934. Fez 5 a 0 e 6 a 0 na Alemanha, 6 a 0 na Suíça e um impressionante 8 a 2 na Hungria, com três gols e cinco assistências de Sindelar.

Um gol “a lá Maradona”

Não se sabe se Diego Armando Maradona, quando anotou aquele gol espetacular contra a Inglaterra na Copa de 1986, se inspirou em Matthias Sindelar, mas poderia muito bem tê-lo feito. Em uma partida disputada em Londres, a equipe austríaca foi um adversário duríssimo para os ingleses, até então invictos dentro do seu território, não se entregou facilmente e, apesar da derrota por 4 a 3, teve muito o que comemorar.

Além de ter sido a primeira vez que o English Teamlevou mais de um gol jogando na Inglaterra, Sindelar anotou um dos gols mais memoráveis da história do futebol mundial. O craque dominou a bola no meio de campo, driblou todos os defensores que vieram tentar roubá-la e fuzilou para o fundo da rede. O árbitro daquela partida, o belga John Langenus, descreveu a pintura dessa maneira na súmula do jogo:

“Zischek (jogador da Áustria) balançou as redes duas vezes, mas o gol de Sindelar foi uma verdadeira obra de arte, um feito que ninguém conseguiria alcançar contra um adversário como os ingleses. Nem antes nem depois dele. Sindelar pegou a bola no meio do campo e disparou com a sua incomparável elegância, driblando tudo que aparecia pela frente, e concluiu para o fundo do gol”.

A primeira e única Copa do Mundo

Quando a seleção austríaca desembarcou na Itália, no verão de 1934, para a disputa da Copa do Mundo, ela carregava consigo um recorde de apenas três derrotas nas últimas 31 partidas disputadas, além do fardo de franca favorita para a conquista do título mundial. A Áustria estreou na competição vencendo os franceses por 3 a 2 (após empate por 1 a 1 no tempo regulamentar), com gols de Sindelar, Schall e Bican. Na segunda partida, vitória por 2 a 1 sobre a rival Hungria, gols de Horvath e Zischek.

Apesar de conhecido pela facilidade de fazer gols, Sindelar mudou seu estilo de jogo para aquela Copa do Mundo e passou a aproveitar a sua habilidade para driblar e sua visão de jogo para servir os companheiros. Classificada, a Áustria teve que enfrentar a equipe da Itália na semifinal. Jogando em território italiano, sob uma forte chuva e com o gramado enlameado, os austríacos, mais técnicos e velozes, sucumbiram diante da força física dos adversários e foram derrotados por 1 a 0.

Como esperado por Benito Mussolini, a Itália estava na grande final, enquanto a Áustria tinha que se contentar com uma disputa de terceiro lugar contra a Alemanha. Com uma equipe reserva e sem Sindelar, os austríacos perderam por 3 a 2 e ficaram na quarta colocação.

A ascensão do nazismo

Depois da decepção na Copa do Mundo de 1934, Sindelar retornou ao Austria Viena, aonde viveu seus últimos momentos de glória. Campeão da Copa da Áustria em 1935 e 1936, o atacante conquistou o bicampeonato da Copa Mitropa, um pequeno torneio continental disputado entre equipes da Europa Central e que ele havia vencido em 1933. Na grande final, o Austria Viena encarou o Sparta Praga, da Tchecoslováquia, e, após empate sem gols na Áustria, a vitória por 1 a 0 fora de casa deu o título para os austríacos.

Naquele ano de 1936, apesar do título continental, Sindelar teve de conviver com duas grandes decepções. A primeira foi a não-convocação para a disputa da Olimpíada de Berlim, em que a Áustria ficou em segundo lugar, perdendo a grande final para a Itália. A segunda foi a ascensão do domínio nazista no seu país natal, que se sacramentou em 1938, com a ocupação total da Alemanha no território austríaco. Entretanto, Sindelar não ia deixar isso barato.

A provocação à Adolf Hitler

Antes da dissolução total da seleção austríaca, o regime nazista marcou um amistoso entre Áustria e Alemanha com o objetivo de “celebrar a reunificação austríaca ao império alemão”. Adolf Hitler e seus comandados deixaram explícito para os jogadores que a ordem era que os alemães teriam que vencer ou, no máximo, conquistar um empate honroso.

Eterno contrário ao regime nazista, Sindelar deu de ombros as ordens dos militares, jogou como se fosse a última partida da sua vida e anotou o primeiro gol da vitória austríaca por 2 a 0. Mas ele não parou por aí. Além da audácia de desafiar o regime nazista com a vitória dentro de campo, Sindelar foi além. Na comemoração do seu gol, o atacante se dirigiu as tribunas aonde estavam presentes os oficiais nazistas – Adolf Hitler incluso – e foi dançar de maneira provocativa. Era a vitória do “Mozart do Futebol” sobre o nazismo.

A morte misteriosa

Evidentemente, a provocação aos generais nazistas não repercutiu de maneira positiva dentro do regime, mas a habilidade de Sindelar era tanta dentro de campo que os militares ainda queriam contar com ele para defender a seleção germânica. Mantendo os seus princípios contrários ao nazismo, o Homem de Papel recusou o convite seguidamente, ora acusando lesão, ora dizendo estar velho demais para competir com a seleção.

Sindelar se manteve na Áustria e se transformou em um dos principais inimigos da Gestapo, a polícia secreta do regime nazista e, aos poucos, tudo que ele mais amava foi sendo destruído. Os clubes austríacos foram proibidos de jogador futebol e o seu amado Austria Viena teve que fechar as portas no final de 1938 e vários jogadores e amigos do atleta tiveram que tomar novos rumos para continuar com a vida profissional no futebol. Desolado, o Mozart do Futebol desistiu de orquestrar equipes dentro de campo e foi ser dono de uma cafeteria até 1939, ano da sua trágica morte.

Em janeiro de 1939, Sindelar, aos 35 anos, e sua namorada, Camila Castagnola, foram encontrados mortos no apartamento do atleta após intoxicação com monóxido de carbono. Até hoje, nenhuma versão oficial foi comprovada. Existem pessoas que acreditam que Sindelar, triste com a vida e depressivo por não poder mais jogar futebol, se suicidou. Outros creem que o passado judio do atleta foi revelado para os oficias nazistas, que o capturaram e o mataram. E há também quem acredite que a provocação feita dentro de campo jamais fora esquecida e havia sido vingada.

Mesmo não tendo sua morte esclarecida, Matthias Sindelar foi enterrado com honras de estado e mais de 20 mil pessoas estiveram presentes para se despedir do ídolo no seu funeral. A cidade de Viena o homenageou com um nome de uma rua, a Sindelarstraße, aonde ecoam as palavras do poema de Friedrich Torberg, dedicado ao craque:

“Jogava futebol como ninguém
Tinha graça e fantasia
Tinha um toque fácil e alegre
Sempre jogava e nunca lutava”

Seis décadas após sua morte, Sindelar foi eleito o maior jogador de futebol austríaco no século XX. Uma homenagem mais do que merecida ao homem que, além de encantar dentro das quadras linhas, teve a ousadia de lutar contra o regime nazista e de provocar ninguém menos do que Adolf Hitler.