Todo homem é influenciado por uma série de aspectos que contribuem para moldar sua personalidade ao longo dos anos. Nesse sentido, o ambiente em que ele está inserido – que envolve a família e sociedade – tem um papel fundamental em sua formação. No futebol, o célebre cronista Nelson Rodrigues disse certa vez que toda vitória “tem que ser o lento trabalho das gerações”, ou seja, produto de um árduo trabalho desenvolvido com o tempo, até o momento em que haja a consagração no campo de jogo. Tendo como base esse entendimento, é possível compreender em parte o que levou o futebol holandês a formar um dos maiores atacantes da história. Aquele que superaria com exímia técnica a brevidade de sua carreira, tolhida por problemas físicos que o acompanhariam durante vários anos. Um ícone do futebol chamado Marco van Basten.

Nascido em Utrecht, no dia 31 de outubro de 1964, Marco era o mais novo dos três filhos do casal Joop e Lenie. Seus irmãos se chamavam Clara e Stanley, sendo que este recebeu o nome em homenagem ao notório jogador inglês Stanley Matthews. Ainda que seu irmão tenha recebido tal nome, foi Marco quem apresentou maior apreço e aptidão para a prática do jogo. Desde cedo ele teve o futebol presente em sua vida. Seu pai, Joop van Basten, foi um jogador semi-profissional que atuou alguns anos pelo VV DOS. A família van Basten vivia na região oeste da cidade de Utrecht, no calmo bairro de Oog in Al, onde Marco passava boa parte do seu tempo jogando bola na rua. No início da década de 1970, era comum as crianças brincarem no grande gramado existente na Cervanteslaan – Avenida Cervantes, em português – e que ficava próximo da residência de van Basten. Atualmente, o local abriga o Marco van Basten Sportpark, um conjunto poliesportivo com o nome da personalidade mais ilustre daquele local.

Bairro de Oog in Al, em Utrecht, na época em que van Basten era um garoto. (Foto: Anefo)

Complexo Marco van Basten Sportpark em Utrecht, no ano de 2010 (Foto: Het Utrechts Archief)

Paralelamente ao futebol que jogava em Oog in Al, Marco van Basten cursava o ensino fundamental na St. Dominicusschool. Assim como as demais escolas holandesas, a St. Dominicusschool tinha uma grade curricular flexível que procurava adequar o plano de estudos às aptidões dos estudantes. Historicamente, o sistema educacional holandês permite e valoriza o ensino que reconheça a individualidade dos alunos, e que procura potencializar a capacidade que cada um deles apresenta. Ainda nos dias de hoje, as escolas holandesas apresentam cargas curriculares específicas que respeitam os desejos dos estudantes e suas famílias, além estarem preparadas para situações como crianças com necessidades especiais.

No caso de van Basten, a família optou pela St. Dominicusschool – uma instituição de orientação católica – que oferecia um sistema de ensino amparado em disciplinas que abrangiam as áreas das Ciências Exatas, Artes e Educação Física. Evidentemente, devido à propensão que Marco apresentava para a prática esportiva, as aulas de Educação Física estavam entre suas preferidas. Fato relevante é que a escola em Utrecht também procurava fornecer conhecimento, compreensão e habilidades nos campos da música, dança, teatro, desenho e artesanato. Diante dessa disponibilidade, além do exercício físico combinado com outras disciplinas, van Basten também se dedicava ao aprendizado da música. Mais precisamente, ele começou a estudar piano.

St. Dominicusschool durante a época em que teve van Basten como aluno, em 1971 (Foto: Het Utrechts Archief)

Num primeiro momento, é natural pensar que aulas de piano podem não ter um grande valor na formação de um jogador de futebol. No entanto, a pluralidade na educação contribui de forma determinante na formação de um futuro profissional, independente da área em que ele atue. Isso se deve ao fato de que a música possibilita uma diversidade de estímulos sensoriais e, devido ao seu caráter relaxante, pode estimular a absorção de conhecimento, ou seja, a aprendizagem. Recentemente, na área da Neurociência, Dr. Christian Gaser, da Universidade de Jena (Alemanha), e Dr. Gottfried Schlaug, da Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos), identificaram em suas pesquisas uma quantidade maior de massa cinzenta no cérebro de pessoas que praticam música. Tal diferença se situa predominantemente em regiões responsáveis pela audição, visão e controle motor. Em particular, a visão e o controle motor – que é o processo pelo qual o cérebro coordena a atividade muscular – são de extrema importância durante a prática do futebol, e indubitavelmente favoreceu ao futuro jogador van Basten.

No que se refere às atividades esportivas, van Basten não se dedicava apenas ao futebol quando era jovem. “Marco e eu compartilhávamos uma paixão por tênis de mesa. Nos fins de semana jogávamos juntos em competições”, declarou Marco van den Bosch, amigo de infância de van Basten, para publicação holandesa Panorama. Evidentemente, cada esporte possui características próprias que os individualizam. No entanto, há aspectos comuns entre as diferentes atividades esportivas, e praticá-las permite potencializar certas habilidades em diferentes contextos. Para exemplificar, o tênis de mesa apresenta uma dinâmica intensa, que contribui no aprimoramento da habilidade motora, percepção espacial e concentração. Também é possível dizer que essa modalidade esportiva ajuda no desenvolvimento do ato reflexo, o que qualifica a tomada de decisões no curto espaço de tempo. Nesse sentido, a habilidade de encontrar soluções rapidamente seria fundamental nos grandes jogos que seriam disputados por van Basten. Com base nos benefícios da prática do tenis de mesa, há décadas os holandeses têm inserido esse esporte na formação de jovens, como é possível observar nesse vídeo:

Ainda que tivesse grande apreço pelo tênis de mesa, era no futebol que Marco van Basten tinha sua maior satisfação e apresentava maior habilidade. Joop, pai de van Basten, logo percebeu o talento que seu filho possuía. Aos seis anos de idade, ele foi levado pelo pai para treinar no UCS EDO, uma equipe amadora da cidade de Utrecht. Já nessa época, o pai incentivava o garoto a entender um pouco sobre as táticas de futebol. A fim de se aprimorar, o garoto van Basten tinha o hábito de reproduzir em desenhos as principais jogadas feitas pelos seus jogadores preferidos. Desde esse tempo, ele tinha uma admiração especial por Johan Cruyff. É importante lembrar que nesse período (início da década de 1970) o futebol europeu tinha a hegemonia do AFC Ajax. Equipe que houvera sido formada pelo lendário técnico Rinus Michels, e que tinha no elenco – além de Cruyff – jogadores como Johan Neeskens, Ruud Krol e Wim Suurbier. Era uma referência inestimável sobre o futebol para qualquer jovem da época.

Marco van Basten (o segundo da esquerda para a direita, agachado) durante a época em que jogou pelo EDO, em 1970. (Foto: Imago Sportfotodienst)

Marco van Basten ficou cerca de um ano jogando pelo EDO. No ano de 1971, aos sete anos de idade, ele se transferiu para outro clube amador de Utrecht, o UVV. Ficaria nesse clube por quase dez anos, e lá começaria definitivamente a demonstrar todo o potencial que possuía. Devido ao nível de futebol que apresentava, era comum van Basten jogar com atletas até dois anos acima de sua idade. Isso começou a chamar a atenção de outros clubes que viam nele um jogador com futuro promissor. Seu verdadeiro potencial foi primeiramente notado por um clube profissional quando tinha apenas onze anos de idade. Leo Beenhakker – então treinador das divisões de base do Feyenoord – convidou o garoto van Basten a transferir-se para o clube de Rotterdam. Entretanto, Joop Van Basten recusou o convite feito ao filho, pois não queria deixá-lo longe de seus familiares e amigos naquele momento. Joop acreditava que Marco era ainda muito jovem e que a mudança para Rotterdam seria prejudicial para o desenvolvimento estável de seu filho. Por uma ironia do destino, alguns anos depois van Basten faria história no Ajax, o maior rival do Feyenoord.

Carteira que identificava Marco van Basten como jogador da base do UVV em 1977 (Foto: ANP)

Até o ano de 1980, van Basten atuou pelo UVV. Dedicava boa parte do tempo aprimorando seu jogo, mas isso não impediu que prosseguisse com seus estudos. É importante ressaltar que o ensino é obrigatório para todos na Holanda até os dezesseis anos de idade. Assim, terminado o ensino fundamental na St. Dominicusschool, van Basten começou a estudar na Niels Stensen College, também localizada em Utrecht. Nessa escola, graduou-se no HAVO, que corresponde ao ensino médio intensivo no sistema educacional holandês. É um curso específico e que tem a duração de cinco anos. Devido sua especificidade, aqueles que possuem o diploma no HAVO estão aptos a ingressar diretamente no ensino profissional superior, que tem a duração média de quatro anos.

Niels Stensen College de Utrecht na década de 1970 (Foto: Het Utrechts Archief)

Historicamente, técnicos e jogadores holandeses possuem uma formação educacional de excelência, e que não se resume apenas para a prática do futebol. É provável que o principal exemplo seja Rinus Michels, que se graduou em Educação Física na Academia de Ensino Superior de Nicolaas Maesstraat. Por sua vez, Johan Cruyff estudou na Escola de Educação Integral de Frankendael, simultaneamente em que jogava nas categorias de base do Ajax. No que se refere a van Basten, ele desenvolveu um raciocínio lógico e analítico por meio dos estudos em diferentes disciplinas na Niels Stensen College, o que seria fundamental tanto para o futebol como para sua vida.

Como jogador do UVV, van Basten foi selecionado para a seleção holandesa sub-16. O sucesso que estava adquirindo nos gramados fez com que FC Utrecht oferecesse o primeiro contrato profissional para van Basten. Ambos não chegaram a um acordo, e o atacante acabou por jogar uma temporada num outro time amador de Utrecht: o USV Elinkwijk. Era questão de tempo para que van Basten deixasse de lado as equipes amadoras para que efetivamente se tornasse um jogador profissional. As atuações com a camisa da Holanda sub-16 confirmaram as ótimas impressões que o jogador havia causado ao longo dos anos. Com isso, o primeiro contrato profissional de van Basten foi assinado em 1981, com o clube que o havia encantado quando era apenas um garoto. O time que revelou Cruyff, seu ídolo de infância: o AFC Ajax de Amsterdã.

Marco van Basten com a camisa do Ajax no início da década de 1980 (Foto: Ger Dijkstra/ANP)

Coincidentemente, Johan Cruyff assinou contrato para voltar a jogar pelo Ajax em dezembro de 1981. Dessa forma, ambos fariam parte do elenco, e o contato com Cruyff teria um valor inestimável para van Basten. O craque holandês vinha de uma curta passagem pelo Levante, e se tornaria numa das maiores influências que van Basten teria no futebol. Em entrevista para UEFA Champions League Magazine, van Basten declarou: “Ele (Cruyff) foi um gênio como jogador e técnico que me mostrou o melhor que o futebol tem a oferecer.” Antes, Marco houvera acompanhado à distância os feitos do Ajax no início da década de 1970 e da seleção holandesa na Copa do Mundo de 1974. A partir de 1981, van Basten teria o privilégio de ter um convívio contínuo com Cruyff, o que aprimoraria seu aprendizado na Escola Holandesa de Futebol.

Apresentação de Cruyff em seu retorno ao Ajax em 1981 (Foto: Anefo)

Marco van Basten e Johan Cruyff durante treinamento do Ajax em 1985 (Foto: Het Nationaal Archief/Rob C. Croes)

Na mesma entrevista para a UEFA Champions League Magazine, van Basten mencionou que ele é “um típico produto da escola holandesa de futebol. Mas do que se trata isso? É comum correlacionar a escola de jogo holandesa ao Futebol Total do técnico Rinus Michels. Um sistema de jogo que privilegia a constante mudança de posição dos jogadores ao longo da partida, eficiente troca de passes e o predomínio na posse de bola. Sem dúvida, há muito do sistema consagrado por Michels na identidade holandesa de jogar futebol. No entanto, a escola holandesa também abrange aspectos vão além do plano tático, e envolvem a valorização da criatividade nas soluções elaboradas durante a partida. Ainda que o método holandês, personificado pelo Futebol Total, prime pela consistência de um futebol coletivo, características individuais que permitam soluções criativas e inovadoras são sempre enaltecidas.

Diversas pesquisas acadêmicas, entre as quais merece destaque as que foram desenvolvidas pelo psicólogo Robert Weisberg, mencionam que a capacidade de realizar trabalhos com habilidade criativa depende, direta ou indiretamente, do conhecimento adquirido na área de atuação profissional. Para tanto, o convívio com pessoas com reconhecido repertório se mostra de vital importância para a aquisição de conhecimento em jovens profissionais. No futebol, o contato com Cruyff, seu ídolo na infância, permitiu que van Basten aprimorasse o potencial que naturalmente ele apresentava, seja no âmbito tático, ou mesmo em situações específicas de jogo. Como exemplo, em algumas situações, as soluções elaboradas por van Basten poderiam remeter ao que Cruyff já houvera feito antes, mas num outro contexto. Com o tempo, isso também favorecia que van Basten encontrasse suas próprias soluções dentro do jogo. É um aprendizado mútuo, entre um profissional experiente e um jovem, o que qualifica o conhecimento de todas as partes envolvidas no processo.

Famoso gol feito por Cruyff em jogo do Barcelona contra o Atlético de Madrid na temporada 1973/74 (Foto: Diário Sport)

De maneira similar a Cruyff, van Basten chuta a bola contra o gol do FC Groningen em jogo válido pela Eredivisie em 1983 (Foto:ANP)

No dia 3 de abril de 1982, van Basten fez sua estreia com a camisa do Ajax, aos dezessete anos de idade. Por uma feliz coincidência, ele substituiu Cruyff na partida contra o NEC Nijmegen. Não demorou muito para que demonstrasse sua qualidade, e nesse mesmo jogo marcaria de cabeça um dos gols da goleada do Ajax por 5 a 0. Essa foi a única partida oficial disputada por van Basten na temporada 1981/82. Foi um período de adaptação, em que o jovem jogador tomou conhecimento de como era a dinâmica que caracterizava o futebol profissional. Nessa época, conheceu no Ajax outro jovem jogador que viria a se tornar um dos seus principais companheiros no futebol: Frank Rijkaard.

Marco van Basten em sua estreia contra o NEC Nijmegen, em abril de 1982 (Foto: Ajax/site oficial)

Nos anos que se seguiram, van Basten rapidamente se tornaria o principal jogador do time. No âmbito nacional, conquistaria com o Ajax os títulos da Eredivisie nas temporadas de 1981/82, 1982/83 e 1984/85, além da KNVB Beker em 1982/83, 1985/86, 1986/87. De forma impressionante, se tornou o artilheiro do campeonato nacional holandês por quatro temporadas consecutivas, de 1983-84 a 1986-87, com a incrível marca de 117 gols em 112 partidas. Entre todos, provavelmente o mais emblemático seja o gol de bicicleta feito contra o FC Den Bosch em 9 de novembro de 1986. Nesse mesmo ano, van Basten foi o maior artilheiro da Europa, com 37 gols em 26 jogos. O Ajax já era treinado por Johan Cruyff, que houvera substituído Aad de Mos no comando técnico da equipe em 1985. Com Cruyff como treinador, van Basten venceu a Recopa da UEFA na temporada 1986/87. O gol da vitória que marcou contra o Lokomotiv Leipzig deu o primeiro título europeu do Ajax após o fim da gloriosa geração de Cruyff e Neeskens. Era a consagração definitiva de van Basten no clube de Amsterdã.

Marco van Basten com o troféu da Recopa da UEFA em 1987 (Foto: Anefo)

Entretanto, nem tudo deu certo para Marco van Basten no período em que atuou pelo Ajax. Em março de 1986, num amistoso contra o Racing Club Heemstede (RCH), ele sofreu uma lesão no tornozelo esquerdo. Esse foi um problema até certo ponto simples, se comparado com o que aconteceria em 7 dezembro de 1986. No jogo contra o FC Groningen, numa disputa de bola com Edwin Olde Riekerink, van Basten contudiu novamente o tornozelo, só que dessa vez foi o direito. A dor foi tão forte que impediu van Basten de permanecer na partida. Problemas na cartilagem desse tornozelo acompanhariam o craque holandês ao longo de sua carreira, sendo a principal causa que o levou a encerrá-la prematuramente. Em entrevista para o jornalista Jaap De Groot, na FIFA Magazine de dezembro de 1996, van Basten deu uma declaração importante sobre esse assunto: “A coisa mais frustrante para mim não é a maneira como machuquei meu tornozelo, mas a forma que eu fui tratado por alguns médicos. A pessoa que mais prejudicou meu tornozelo não foi um jogador, mas um cirurgião.”

Localização da cartilagem no tornozelo, região onde van Basten teve grave lesão (Arte: Revista Placar/reprodução)

Marco van Basten no Hospital Prinsengracht de Amsterdã, em dezembro de 1986 (Foto: Bart Molendijk/Anefo)

Momento em que van Basten deixou o Hospital Prinsengracht, amparado por muletas (Foto: Bart Molendijk/Anefo)

Diante dessa situação, van Basten terminaria a temporada 1986/87 sob o efeito de analgésicos para atenuar a dor. Mesmo com esses problemas físicos, seu futebol chamou a atenção do empresário que houvera adquirido o AC Milan na época: Silvio Berlusconi. Segundo o pesquisador holandês Zeger van Herwaarden, assim que Berlusconi tomou conhecimento de van Basten, por meio de vídeos, disse: ”Eu vi o suficiente. Aquele cara que eu quero.” Ao lado de Frank Rijkaard e Ruud Gullit, van Basten ganharia uma série de títulos com a equipe rossonera, comandada pelo treinador Arrigo Sacchi, incluindo o bicampeonato da Copa dos Campeões da Europa em 1988/89 e 1989/90. Como reconhecimento pelo futebol apresentado, foi premiado pela revista France Football com a Ballon d'Or em 1988, 1989 e 1992.

Ruud Gullit, van Basten e Frank Rijkaard contratados pelo AC Milan (Foto: Getty)

Van Basten e Ruud Gullit com o troféu da Copa dos Campeões da Europa, vencida pelo Milan após goleada por 4 a 0 contra o Steaua Bucareste, em 1989 (Foto: Getty)

Marco van Basten com Ballon d’Or da Revista France Football em 1989 (Foto: Presse Sports)

Mesmo no Milan, van Basten não havia esquecido toda importância do aprendizado adquirido anteriormente: “Quando eu tive Johan Cruyff como técnico (no Ajax), tornei-me mais ciente dos detalhes de como jogar dessa forma (de acordo com a escola holandesa de futebol). Essas foram as experiências que levei comigo para o Milan, onde me tornei mais maduro como jogador”, disse van Basten para a UEFA Champions League Magazine. Do ponto de vista da experiência, pesquisas realizadas por Herbert Simon e Willian Chase em 1973 – na área da psicologia cognitiva – indicaram que o desenvolvimento de habilidades numa determinada atividade está intrinsecamente ligado ao tempo em que o profissional exerce o seu ofício. Dessa forma, é possível dizer que o AC Milan se beneficiou de todo o conhecimento que van Basten havia obtido no futebol holandês, desde o tempo em que jogava em Utrecht até a sua transferência para a Itália.

Inserido no aprendizado de van Basten a respeito da filosofia holandesa de jogar futebol, um fato importante merece destaque: o período em que foi treinado na seleção holandesa por Rinus Michels. Sobre o técnico, van Basten definiu como o “pai do futebol holandês”, e considera que ele "tinha todas as qualidades que fazem um técnico ser de elite". Fato é que sob o comando de Michels o futebol holandês adquiriu não apenas competitividade, pois o Futebol Total também proporcionou o surgimento de uma identidade holandesa no futebol. Isso distinguia o futebol praticado nos Países Baixos de outros locais, e influenciaria outras equipes ao longo dos anos. A oportunidade de ter Michels como técnico surgiu durante a década de 1980, particularmente durante a preparação e a disputa da Eurocopa de 1988. Oportunidade que culminaria numa conquista que entrou para história do futebol holandês.

Marco van Basten e Rinus Michels durante treinamento da seleção holandesa em 1987 (Foto: ANP)

Na segunda metade da década de 1980, a seleção holandesa vivia um antagonismo latente. Ainda que apresentasse uma geração de jogadores de qualidade indiscutível – com jogadores como Gullit, Rijkaard, os irmãos Koeman e van Basten – o desempenho oscilante não possibilitou que a Holanda disputasse as copas de 1982 e 1986. Isso depois de jogar duas finais consecutivamente durante a década anterior (1974 e 1978). Com esse retrospecto, boa parte da esperança holandesa na Eurocopa de 1988 estava no comando de Rinus Michels e na dupla de ataque formada por Gullit e van Basten. Para tanto, Michels elaborou um time que respeitava o viés ofensivo do Futebol Total, mas que tinha diferenças fundamentais se for comparado à equipe que foi vice-campeã mundial em 1974.

Elenco e comissão técnica da Holanda que disputou a Eurocopa de 1988 (Foto: ANP)

Ruud Gullit, Rinus Michels e Marco van Basten no embarque para disputar a Eurocopa de 1988 (Foto: Rob C. Croes/Anefo)

Primeiramente, é importante salientar que havia diferenças básicas entre os dois times. O Carrossel Holandês de 1974 variava constantemente, indo por exemplo do 4-3-3 ao 3-4-3. Em compensação, Rinus Michels adotou em 1988 um sistema 4-4-2 que se alterava menos durante as partidas. Do ponto de vista da dinâmica de jogo, é possível identificar uma transição de meio campo para o ataque menos intensa na equipe que disputou a Eurocopa. No ataque, é importante ressaltar que era Ruud Gullit que habitualmente voltava ao meio de campo para articular as jogadas. No sistema proposto por Michels, van Basten tinha funções mais concentradas no ataque. É importante lembrar os problemas físicos que o atacante havia enfrentado anteriormente. Para se ter ideia da situação, na temporada 1987/88 – a primeira com a camisa do Milan – a lesão no tornozelo fez com que van Basten disputasse apenas 11 partidas.

Diferenças entre as equipes holandesas comandadas por Rinus Michels (Arte: Rafael Mateus/VAVEL Brasil)

Ainda que a capacidade técnica inegável de van Basten permitisse que ele desempenhasse diferentes funções dentro do campo, seria até certo ponto imprudente que Michels atribuísse muitas funções para o jogador vindo de uma contusão séria. Assim, o técnico preferiu que van Basten se concentrasse na elaboração e finalização das jogadas próximas da área adversária. De maneira inteligente, Michels potencializava a grande qualidade técnica do seu jogador e simultaneamente preservava sua condição física. Em outras palavras, o técnico holandês adaptou suas convicções a respeito do futebol a fim de utilizar o talento de van Basten da melhor maneira possível. Essa atitude valoriza o trabalho feito por Michels, pois ele demonstrou a capacidade de adequar o sistema de jogo dentro das condicionantes que se apresentavam.

O sistema elaborado por Rinus Michels se mostraria eficiente. Marco van Basten se tornou o artilheiro da Eurocopa de 1988, com cinco gols marcados em cinco jogos disputados. Durante a campanha, merecem destaque as partidas contra a Inglaterra (na fase de grupos) e a semifinal contra a Alemanha Ocidental. Contra os ingleses, o atacante holandês fez uma partida brilhante em que marcou os três gols da vitória por 3 a 1. Contra a equipe germânica, que jogava o torneio em casa, van Basten sofreu o pênalti – convertido por Ronald Koeman – e fez o gol da vitória quase no final da partida. A vitória por 2 a 1 sobre seleção treinada por Franz Beckenbauer tinha um sabor especial para Michels, pois ele houvera perdido para o mesmo adversário a final da Copa do Mundo de 1974.

No entanto, o melhor estava reservado para a final, contra a União Soviética. Aos 32 minutos do primeiro tempo, um passe de cabeça de van Basten para Gullit – que também de cabeça concluiu para o gol – abriria o placar para os holandeses na final. O ápice da conquista aconteceria no começo do segundo tempo. Após receber um lançamento de Arnold Mühren, van Basten chutou a bola de primeira para o gol de Rinat Dasaev. Um gol memorável que entraria para história do futebol holandês e mundial. Rinus Michels colocou as mãos na cabeça como se não acreditasse no que havia acontecido. Quando o árbitro Michel Vautrot apitou o final do jogo, a celebração no Olympiastadion de Munique era laranja. A Holanda se tornava campeã da Europa.

Momento em que van Basten marcou o histórico segundo gol contra a União Soviética, na final da Eurocopa de 1988 (Foto: Bob Thomas/Getty)

Marco van Basten com o troféu de campeão da Eurocopa de 1988 (Foto: ANP)

Comissão técnica e jogadores campeões europeus sendo recebidos pela família real holandesa em 1988 (Foto: ANP)

Depois das glórias com as camisas do Ajax, Milan e seleção da Holanda, van Basten voltaria a conviver com os problemas em seu tornozelo direito durante o início da década de 1990. A lesão reapareceu numa partida contra o AC Ancona da temporada 1992-93. Isso fez com que van Basten fosse obrigado a parar de jogar a fim de passar por uma nova cirurgia. Depois disso, ele disputaria mais alguns jogos – sua última partida pelo Milan foi a derrota por 1 a 0 na final da UEFA Champions League de 1992/93 contra o Olympique de Marselha – para enfim anunciar sua aposentadoria em 1995. Os campos perderam um jogador, mas o futebol mundial ganharia um ícone. Quase vinte anos após van Basten deixar de forma definitiva os gramados, seus feitos permanecem vivos na memória de todos aqueles que apreciam o futebol.

Despedida de van Basten no Milan, realizada no Estádio San Siro em 1995 (Foto: Grazia Neri)

Nos últimos anos, van Basten se dedicou a carreira de treinador, com passagens pelo Ajax, seleção da Holanda (comandou a equipe durante a Copa do Mundo de 2006 e Eurocopa de 2008) e Heerenveen. Recentemente, foi anunciado como treinador do AZ Alkmaar para a temporada 2014/15. Com o passar do tempo – completará 50 anos em outubro – van Basten adquiriu grande conhecimento, particularmente no que se refere ao estilo de jogar holandês. Aquisição de experiência que vem desde o tempo em que era uma criança que jogava na Cervanteslaan em Utrecht, até o período em que foi treinado por nomes históricos do futebol como Rinus Michels, Johan Cruyff e Arrigo Sacchi.

Marco van Basten no período em que foi treinador da seleção da Holanda (Foto: Getty)

De forma conclusiva, é possível dizer que van Basten se desenvolveu no cerne da cultura futebolística holandesa. “Acima de tudo, (o futebol) tem desempenhado um papel enorme para fazer a pessoa que sou hoje”, mencionou à UEFA Champions League Magazine. Como só acontece aos grandes nomes do esporte, futebol e van Basten se tornam indissolúveis, o que faz com que a história de ambos se complemente. No caso de van Basten, história intrinsecamente ligada às suas origens e influências dentro e fora de campo. Uma trajetória que o configura num dos maiores jogadores de todos os tempos, e um exemplo de personalidade moldada de acordo com os preceitos da escola holandesa de futebol.

Homenagem feita pelo Ajax à Cruyff e van Basten, ícones da história do futebol holandês (Foto: ANP)

Encontro entre Michels e van Basten, realizado no final da vida do lendário técnico da escola holandesa de futebol (Foto: FOK/reprodução)

BS

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Rafael Mateus
Apenas alguém interessado por Arte, História e Futebol (aquele que vai além das quatro linhas).