Quando a Seleção de Camarões entrar em campo da Arena das Dunas, em Natal, no dia 13 de junho para a primeira partida da Copa do Mundo de 2014, 24 anos terão se passado do momento em que os Leões Indomáveis conquistaram o mundo com um futebol alegre, irresponsável e quase inocente que os levaram às quartas da Copa de 1990.

O posto de maior ídolo nacional do carismático Roger Milla foi tomado por um jogador de nível técnico muito mais alto, o também atacante Samuel Eto'o. No entanto, o líder de uma geração que decepcionou todo o Planeta não conseguiu repetir os feitos de seu antecessor com a camisa camaronesa e chega ao Brasil como pivô de um racha no elenco do país que disputará em terras brasileiras sua sexta Copa do Mundo.

Roger Milla: o sucesso tardio que entrou para a história

Albert Roger Rooh Miller nasceu em Yaoundé, capital camaronesa, em 20 de maio de 1952. Filho de um funcionário da companhia ferroviária local, ele se acostumou a mudar de casa e de cidade durante sua infância. Em todos os lugares por que passava, porém, tinha na bola sua fiel companheira. De pés descalços, carregava o pretensioso apelido de Pelé nas peladas jogadas em Camarões.

Destaque no futebol local, chamou a atenção dos franceses

Guardadas as devidas proporções, o apelido fazia jus ao seu desempenho com a bola. Albert rapidamente se destacou e, aos 18 anos, virou Roger Milla, jogador do Léopards de Doala, mesma cidade do juveniel Eclair de Doala, onde havia passado os cinco anos anteriores. Lá ficou de 1970 a 1973, se sagrando campeão camaronês em 1972 e 73. Então se transferiu ao Tonnerre de Yaoundé, onde começou a ganhar fama.

No clube da capital foram dois títulos, 87 jogos e 69 gols, além da conquista de melhor jogador do Continente Africano em 1976. Como é de praxe com todos os jogadores que se destacam em Camarões, ele rapidamente chamou a atenção do futebol francês e foi parar no Valenciennes, em 1977. Lá ficou durante três temporadas, mas sem grande brilho. Ficou boa parte do tempo no banco de reservas e outra boa parte no Departamento Médico, até se transferir para o Monaco, em 1979.

Lá a história se repetiu e Milla, já em 1980 foi para o Bastia, onde ainda não conseguiu aparecer com destaque. O atacante, ao mesmo tempo não conseguia ter um bom desempenho pela Seleção de Camarões, brigando inclusive com o técnico do time que, dois anos depois, chegaria a sua primeira Copa do Mundo. Ele se defende: "Faziam julgamentos sobre mim com base no que ouviam ou liam na imprensa. Os clubes grandes não acreditavam em mim".

Os desempenhos ruins nos times franceses o levaram, em 1984, ao Saint-Éttiénne, que havia sido rebaixado recenetemente para a segunda divisão francesa. E, lá, Milla, aos 32 anos, começou a reescrever sua história. Em 31 partidas, foram 22 gols que levaram o atacante ao Montpellier, em 1986. Voltando a ser ídolo do futebol camaronês, ele anunciou em 1988, após vencer sua segunda Copa Africana das Nações, que, aos 36 anos, deixaria a Seleção. Em 1989, voltou a sua terra natal para jogar no Saint-Pierre de Reunion esperando um fim de carreira tranquilo no país em que já era tido como astro.

Desempenho ruim na França o levou de volta para casa

Entretanto, em 1989, a um ano do Mundial do Itália, o "racha" interno na Seleção e Camarões, que conquistou vaga pra sua segunda Copa após a ausência no México em 1986, levou a imprensa local a pedir a volta de Milla. Conhecido por suas interferências no futebol local, o presidente Paul Biya ligou para o atacane, que aceitou disputar a Copa com os Leões Indomáveis, que haviam deixado a Espanha em 1982 com três empates em três jogos.

E foi na Copa do Mundo da Itália que Milla deixou de ser um ídolo nacional para virar um astro mundial. Aos 38 anos, ele foi um dos destaques de uma Copa que teve em Camarões a sua grande zebra, chegando às quartas de final. Antes de encerrar a carreira na Indonésia, ele entrou paa a história do futebol ao ser o jogador mais velho da história a marcar um gol em Copas, quando, em 1994, fez um gol aos 42 anos no Mundial dos Estados Unidos. Não à toa, ele até hoje é chamado de "excelência" em Camarões. Sucesso tardio e absoluto, a ponto de transformar o antigo apelido herdado de outro "chefe de estado" da bola dispensável. Ele é Roger Milla, o ícone de uma geração que encantou o mundo.

Copa do Mundo de 1990: a primeira grande aparição africana

Em 1990, apenas 24 países disputavam a Copa do Mundo. Destes, apenas dois entre 26 filiados a Confederação Africana de Futebol ganhariam vaga ao Mundial da Itália. A pouca atenção ao continente africano - que tinha duas vagas a menos que a América do Sul, mesmo com quase o triplo de filiados - era justificável: os africanos jamais haviam aparecido com algum destaque em uma Copa.

Resultado surpreendente já era, em parte, esperado

Embora não tivesse ido ao México em 1986, a seleção de Camarões tinha um certo favoritismo para ficar com uma das vagas. Entrando direto na segunda fase, somou quatro vitórias, um empate e uma derrota no Grupo 3, que dividiu com Nigéria, Angola e Gabão, ganhando o direito de disputar uma vaga no Mundial com a Tunísia. Os Leões Indomáveis venceram em casa por 2 a 0 e por 1 a 0 em Túnis, carimbando o passaporte para sua segunda Copa.

A vida na Itália não prometia ser das mais fáceis, já que os camaroneses foram sorteados no Grupo B, ao lado da então campeã mundial Argentina, a União Soviética e a Romênia. O jogo de estreia - abertura daquela Copa - seria logo contra os argentinos. O mundo esperava, até pela força dos sul-americanos, uma goleada. Mas o tempo foi passando e o gol dos hermanos não saía... Até que, aos 22 minutos do segundo tempo, o inesperado aconteceu: François Oman-Biyk abriu o placar para o time africano, que segurou a vitória até o fim e conseguiu uma enorme façanha.

Em tempos onde os dois primeiros mais alguns terceiro colocados seguiam para as oitavas de final, a vitória deu esperanças reais de classificação aos camaroneses. Com dois gols de Roger Milla, os Leões bateram a Romênia por 2 a 1 e, mesmo goleados pela União Soviética no último jogo, avançaram em primeiro lugar.

Falha de Higuita ficou marcada com o gol de Roger Milla

Nas oitavas de final, a adversária seria a emergente Colômbia. O jogo foi tenso e terminou sem gols, levando a partida para a prorrogação. A um minuto do segundo tempo da prorrogação, Milla, sempre ele, fez o gol que aproximou Camarões de uma histórica vaga nas quartas de final. Três minutos depois, René Higuita, o goleiro maluco dos colombianos, foi tentar driblar Milla na intermediária, perdeu a bola e os africanos marcaram o segundo. "Ele tentou me driblar e ninguém dribla Roger Milla", relembra o atacante. A Colômbia ainda diminuiu, mas não impediu o feito histórico dos camaroneses.

Passar para a semifinal parecia impossível. A Inglaterra de Gary Lineker era favorita ao título e Camarões parecia não oferecer perigo aos ingleses. No entanto, surpreender era a especilidade desse time, que virou o jogo após levar um gol na primeira etapa. A vitória por 2 a 1 faria quase todos os times do mundo jogarem na defesa, mas esse Camarões era diferente. Alegre, inocente, irresponsável, continuou indo ao ataque e ofereceu espaços para o fortíssimo escrete inglês, que empataram com o próprio Lineker aos 38 do segundo tempo. Na prorrogação, os europeus, muito mais bem preparados fisicamente, anotaram o terceiro tento, eliminando os africanos. Nada, porém, que apagasse um feito de um time que, com sua alegria, encantou o planeta e, por que não dizer, foi um dos grandes vencedores daquele mundial.

A decepção nos Estados Unidos

Depois do sucesso na Itália, a seleção camaronesa era, naturalmente, a maior potência africana. Sem grandes dificuldades no Grupo 3, os Leões garantiram passaporte para sua terceira Copa e, pela primeira vez, Milla e companhia disputariam dois Mundiais seguidos. O grupo novamente não era dos mais fáceis. Novamente na chave B, os africanos enfrentariam, na primeira fase, o Brasil, a forte seleção da Suécia e reencontrariam a agora Rússia, após o fim da União Soviética. Ainda assim, era esperada uma nova classificação para as oitavas de final.

No primeiro jogo, a Suécia saiu na frente, sofreu a virada, mas arrancou um empate de Camarões aos 30 minutos do segundo tempo. Na segunda partida, contra o Brasil, os camaroneses não ofereceram grandes dificuldades ao escrete brasileiro e foram derrotados por 3 a 0. Apenas uma vitória contra a Rússia daria aos africanos alguma chance de avançar de fase como um dos quatro melhores terceiro colocados. A despedida da Copa, entretanto, foi bem menos gloriosa que quatro anos antes: os russos aplicaram uma goleada de 6 a 1 nos camaroneses. Esse um gol, porém, foi o já citado histórico tento de Milla, a um minuto do segundo tempo, que o colocou como o mais velho a marcar em Mundiais.

Uma nova esperança

A aposentadoria de Milla em 1994 deixou os camaroneses órfãos. A nova geração prometia ir longe, mas faltava um craque, um grande jogador. Em 1997, ele começou a aparecer. Nascido em Douala, Samuel Eto'o jogou de 1992 a 1997 na base do Kadji Sports Academy, de Camarões e, de lá, foi direto para o time profissional do Real Madrid B. No mesmo ano de 1997, ele estreou pela Seleção camaronesa um dia antes de completar 16 anos. No ano seguinte, já emprestado ao pequeno Leganés da Espanha, fez parte do elenco que naufragou na Copa do Mundo de 1998, na França. Os leões impataram com Áustria e Chile e foram derrotados pela Itália, terminando em último lugar no Grupo B.

Ainda atleta do Real Madrid B, ele passou por empréstimo por Espanyol e Mallorca, onde, em 2000, foi contratado em definitivo. E foi em 2000 que Camarões voltou a aparecer com destaque no cenário internacional. Vencendo o Brasil com dois jogadores a menos na grande final e tendo em Eto'o o seu grande nome, o time sub-23 dos Leões Indomáveis foi medalha de ouro no futebol masculino dos Jogos Olímpicos de Sydney, na Austrália. Após quatro temporadas no Mallorca, Eto'o enfim chegou a um gigante europeu, se tornando um jogador camaronês de maior sucesso no futebol de clubes.

Foto: Agência Estado

Carreira de contrastes

A carreira de Samuel Eto'o na Europa tinha um sucesso muito maior que a de Milla. Em 2004, aos 23 anos, ele foi contratado pelo Barcelona e, lá, se tornou um dos melhores atacantes do mundo. Em cinco anos na Catalunha, foram várias conquistas no futebol espanhol, além de uma Uefa Champions League na temporada 2005/06. Eleito o melhor atacante da temporada em questão, ele ainda terminou em terceiro lugar na disputa do prêmio de Melhor Jogador do Mundo.

Alternância entre ótimos momentos e fases ruins marcam a trajetória de Eto'o

Eto'o, todavia, tinha um ponto muito em comum com Milla: o desempenho abaixo do esperado por Camarões. A geração medalha de ouro não vingou e os Leões ficaram de fora dos mundiais de 2002 e de 2006. Eto'o também jogava menos com a camisa verde do que jogava pelos blaugranas e, se foi o símbolo da vitória em 2000, virou o símbolo do fracasso. Em 2009, sua passagem pelo Barça chegou ao fim depois de 145 jogos e 108 gols.

A carreira, porém, continuou muito boa para o camaronês que conseguiu ao lado dos companheiros uma vaga para a Copa do Mundo da África do Sul em 2010. De Barcelona ele foi para a Internazionale envolvido em uma troca com o sueco Zlatán Ibrahimovic. Na Itália, ele manteve seu bom futebol e foi novamente campeão da Uefa Champions League, agora na temporada 2009/10. No ano seguinte, ainda em boa fase, ele, que dois anos antes havia se tornado o maior artilheiro da Copa das Nações Africanas, trocou a vaga em um time de um grande centro europeu pelo caminhão de dinheiro oferecido pelos russos do Anzhi.

Na Rússia, Eto'o prosseguiu com seu bom desempenho e chamou a atenção novamente de um grande time europeu. O Chelsea, que o contratou para a temproada 2013-2014, onde teve um desempenho apenas regular. Alternando bons jogos com outros nem tão inspirados e sem uma grande regularidade no time de José Mourinho, ele encerrou sua primeira temporada em Stamford Bridge com sete gols em 18 jogos.

As polêmicas de Eto'o na Seleção

Outra semelhança entre Eto'o e Milla está nas polêmicas envolvendo a Seleção de Camarões. Nesse quesito, o currículo de Samuel é até mais extenso que o de seu antecessor. O desempenho nunca foi exatamente o que se esperava. Em 2006, ele perdeu o pênalti que eliminou Camarões da Copa Africana de Nações nas quartas de final contra a Costa do Marfim e, dois anos depois, deu uma cabeçada em um repórter durante uma coletiva de imprensa enquanto estava treinando com a Seleção.

Mas o primeiro grande atrito entre o jogador e a Seleção aconteceu em 2011, um ano depois de mais um fracasso camaronês em Copas (novamente foi eliminado na primeira fase). Ele foi acusado de liderar uma greve de jogadores em uma partida contra a Argélia. A Federação Camaronesa de Futebol lhe aplicou uma punição de 14 jogos por indisciplina, que depois acabou reduzida para apenas quatro, cumpridos em um período de oito meses.

Críticas resultaram em punição ao atacante

O problema é que, quando a punição acabou, quem não quis voltar foi Eto'o. Dizendo que a Seleção era "amadora e desorganizada", ele afirmou que não jogaria mais por Camarões, que já tinha uma dependência muito grande de seus gols. Para contornar a situação, foi chamado o primeiro-ministro do país, que acabou convencendo Samuel a liderar a equipe na tentativa de vir ao Brasil em 2014.

E foi justamente nas Eliminatórias que ocorreu o maior desentendimento entre Eto'o e a Federação Camaronesa de Futebol, que provocou um racha no grupo. Foi em 2013, durante a disputa da fase de grupos, quando o técnico alemão Volker Finke optou por não escalar o goleiro Kameni e o atacante Pierre Wébo, ambos jogadores do futebol europeu, para uma partida contra a Líbia. A decisão irritou Eto'o, que discutiu com o treinador e praticamente exigiu a volta de ambos ao time titular.

A crise chegou ao seu auge após a partida de ida do playoff que valia uma vaga na Copa do Mundo do Brasil. Após o empate em zero a zero com a Tunísia, em Tunís, Eto'o afirmou: "Meus companheiros decidiram não me passar mais a bola. Por isso, resolvi jogar no meio de campo para dar mais jogo a mim mesmo". A declaração, é claro, repercutiu muito mal internamente. Volker declarou que Eto'o não falou a verdade e que esse tipo de reclamação era "coisa de pátio de colégio".

Pivô do racha no elenco, ele novamente anunciou sua aposentadoria da Seleção e, dessa vez, nem o primeiro-ministro conseguiu resolver o impasse. Em mais uma coincidência em relação a Roger Milla, coube ao Presidente Paul Biya - que se mantém a mais de 30 anos no poder - levar Eto'o a reconsiderar a decisão e convencê-lo a disputar a Copa do Mundo do Brasil, após a vaga conquistada com uma goleada por 4 a 1 sobre os tunisianos em Yaoundé.

A chegada ao Brasil: as incógnitas de um país que volta a ser azarão

Por todos os problemas que enfrentou nos últimos anos, a Seleção de Camarões perdeu quase todo o prestígio conquistado nos anos 90. Os sucessivos fracassos em torneios importantes transformaram a outrora potência africana em zebra. Dividindo o Grupo A com Brasil, Croácia e México, os Leões Indomáveis são a quarta força do grupo e uma classificação para as oitavas de final será considerada uma grande zebra.

O racha no elenco não é o único fator que gera desconfiança em Camarões. O elenco é notoriamente mais fraco que em anos anteriores e não inspira a menor confiança. Os camaroneses dependem ainda mais de Eto'o e, até pelas crises recentes, o coletivo da equipe não é exatamente dos melhores. As jogadas individuais e a velocidade devem ser as apostas dos comandados de Volker Finke para tentar surpreender.

Eto'o, aliás, é outro que vive um momento decisivo. Aos 33 anos, ele pode disputar no Brasil a sua última Copa do Mundo. Daqui a quatro anos, estará com a idade avançada e, pelos problemas recentes, provavelmente terá se afastado da Seleção. Entretanto, a história nos mostra que essa Copa pode ser um recomeço para o melhor jogador da história de Camarões.

Um bom desempenho em terras brasileiras pode melhorar o ambiente interno, reconquistar a torcida e iniciar uma reviravolta parecida com a de Roger Milla. Se Eto'o jogará até os 42 anos, é difícil dizer. Mas não é nenhum absurdo pensar que, no Brasil e nos anos seguintes, ele pode liderar um Camarões que voltará a fazer sua especialidade: surpreender o Mundo.

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