Nos primeiros meses de 2014, as relações políticas entre Ucrânia e Rússia ganharam ares de tensão. Pode-se dizer que os ucranianos se dividiram em dois grandes grupos: os nacionalistas, concentrados principalmente na região da capital Kiev e defensores de uma maior proximidade do governo com o Ocidente, e os pró-Rússia, os quais mantêm as raízes soviéticas - falam russo, por exemplo - e estão concentrados na parte leste do país, próxima à fronteira com a Rússia. Mais ao sul, a região autônoma da Crimeia viu a maioria de seus habitantes ir às urnas e optar pela anexação à Federação Russa, fato o qual intensificou os conflitos.

As regiões nas quais as dualidades se concentram também são sedes dos dois principais clubes de futebol da Ucrânia: o Dynamo Kiev e o Shakhtar Donetsk. Para se ter ideia, a Premier League, desde que foi criada devido à dissolução da antiga União Soviética, só não foi conquistada por um deles em uma oportunidade: na primeira edição, disputada em 1992, cujo campeão foi o Tavriya Simferopol.

Depois de mandar e desmandar no campeonato - obteve nove conquistas consecutivas -, o Dynamo agora vê o Shakhtar ser soberano no país - o time de Donetsk foi campeão nas últimas cinco edições. Respectivamente, o clube da capital federal e o clube de Donetsk detêm 13 e nove taças da primeira divisão. Também são os únicos ucranianos com títulos internacionais: enquanto os Azuis possuem duas Taças dos Vencedores de Taças (1975 e 1986) e uma Supercopa da Uefa (1975), conquistas as quais remontam à época da URSS, os Mineiros são os donos de um caneco recente, o da Uefa Europa League de 2009. Tais fatos alimentam ainda mais a rivalidade entre as equipes e, evidentemente, os seus torcedores. Contudo, a rivalidade não se acirra somente dentro das quatro linhas, mas fora delas também.

"Além do futebol, tinha rivalidade política também. Na Ucrânia, eles têm um costume de o torcedor visitante se juntar ao torcedor mandante nos jogos para cantar o nome da cidade onde o jogo está acontecendo. Mas isso nunca acontece quando Shakhtar e Dynamo se enfrentam", disse Betão, zagueiro que foi revelado pelo Corinthians, defendeu o Dynamo Kiev por quatro anos e atualmente está na Ponte Preta, em entrevista à BBC Brasil.

Dynamo Kiev e Shakhtar Donetsk alimentam entre si a maior rivalidade dos gramados da Ucrânia (Foto: Getty Images)

O jogador também informa que o futebol ucraniano vem recebendo cada vez mais a influência de milionários. "Na Ucrânia, você vê um país que vive duas faces. Você tem um país meio abandonado, com alguns lugares bonitos, é uma mistura meio que indefinida. Quem tem dinheiro lá tem muito dinheiro, e são poucos. Aí, esses milionários investem no futebol", relatou.

Uma grande prova disso é o Shakhtar Donetsk, que alavancou sua importância nos cenários nacional e internacional depois dos recentes investimentos de Rinat Akhmetov, bilionário do ramo da mineração, atividade econômica a qual sustenta a região onde o clube é sediado. Akhmetov é aliado político de Viktor Yanukovych, presidente da nação até fevereiro deste ano, época na qual foi destituído do cargo pelo parlamento e fugiu do país. Agora, a presidência está nas mãos de Petro Poroshenko, que assumiu em junho.

Sergey Kurchenko, outro aliado de Yanukovych, também fugiu da nação do Leste Europeu. Kurchenko é dono do Metalist Kharkiv e, graças ao magnata, o clube da segunda cidade ucraniana mais populosa tornou-se uma das grandes forças do futebol do país. Entretanto, a situação financeira do Metalist mudou desde que o paradeiro de seu presidente ficou desconhecido. As contas bancárias do magnata foram congeladas e os jogadores chegaram a ficar com os salários atrasados.

Vice-campeão nacional na temporada 2012/13, o Metalist foi o terceiro colocado na edição 2013/14 e conta com seis jogadores brasileiros em seu elenco: o zagueiro Rodrigo Moledo, o lateral Márcio Azevedo, os meias Diego Souza e Cleiton Xavier e os atacantes Jajá e Willian, sendo que este último está emprestado ao Cruzeiro. Ainda há um caso curioso, o do meia Edmar, que se naturalizou ucraniano, é casado com uma ucraniana desde 2008 e foi intimado a servir o exércio local durante este período de instabilidade. Com 48 gols, Cleiton Xavier já é o oitavo maior artilheiro da história do clube. Kharkiv foi a capital do país até 1934 e a etnia predominante no local é a russa.

"O Metalist foi comprado por Sergey no ano passado e ele era muito próximo do ex-presidente. Com os dois foragidos, ficou complicado para o time se manter", explica Alex Merino, peruano que vive na Ucrânia há 12 anos.

"Na Ucrânia, há uma influência política nos times, porque todas as equipes pertencem a donos milionários aqui. São eles que financiam as equipes. E eles têm relações com políticos", ressaltou Alex.

Ihor Kolomoyskyi é mais uma prova de que futebol, dinheiro e política estão intimamente ligados na Ucrânia. Ele é presidente do Dnipro Dnipropetrovsk, atual vice-campeão da Premier League, e governador do Óblast de Dnipropetrovsk. A fortuna do bilionário, o qual é descendente de judeus e também possui cidadanias israelense e cipriota, tem ajudado o Dnipro a fazer campanhas relevantes a nível nacional e a participar de competições internacionais - na atual edição da Uefa Champions League, a equipe enfrentará o dinamarquês Copenhague na terceira fase eliminatória. Banhada pelo rio Dniepre, Dnipropetrovsk é a quarta cidade mais populosa da Ucrânia e, também, um grande centro financeiro e político do país.

Os brasileiros os quais integram o elenco do Dnipro são o zagueiro Douglas, o meia Léo Matos e o atacante Matheus. Entre as grandes forças do futebol nacional, o Dynamo Kiev é o clube com menos brasileiros: apenas o zagueiro Danilo Silva e o atacante Dudu, que está emprestado ao Dinamo Zagreb, pertencem à equipe da capital. Em contrapartida, o Shakhtar Donetsk possui 12 brasileiros, um número realmente impressionante. São eles o lateral Ismaily, os meias Wellington Nem, Fred, Bernard, Marlos, Ilsinho, Dentinho, Taison, Alex Teixeira, Douglas Costa e Alan Patrick (emprestado ao Internacional) e o atacante Luiz Adriano.

O zagueiro Betão sabe o motivo desta disparidade. "Existe essa divisão na contratação específica dos brasileiros. O Shakhtar e o Metalist investem pesado nos brasileiros. Já o Dynamo de Kiev fala que tem que manter as raízes ucranianas. Então eles investem menos nos brasileiros. E até nisso você vê a divisão", afirmou.

No meio de clubes endinheirados também existem "primos pobres". Em outubro de 2013, com a Premier League em andamento, o Arsenal Kiev, então presidido por Vadym Rabynovych, decretou falência e foi desfiliado da FFU por não ter comparecido às partidas frente ao Tavriya Simferopol, válida pela primeira divisão, e ao Nyva Ternopil, pela Copa da Ucrânia. Os proprietários dos demais clubes da elite ainda tentaram ajudar financeiramente os Cannoneers, mas de nada adiantou. Após 13 partidas jogadas, o Arsenal foi excluído da disputa e os resultados de seus jogos foram anulados.

Desde que os protestos e os confrontos entre civis e policiais tomaram conta da Ucrânia, o medo imperou entre os jogadores, os quais já ameaçavam fugir do país. A crise "estourou" no momento da rotineira pausa do campeonato nacional durante o inverno. A retomada do certame se deu de maneira tardia e vários jogos foram realizados com portões fechados.

"Quando a situação ficou mais tensa, no ápice, com muitas mortes, eu acabei ficando uns dias no Centro de Treinamento do Dynamo, que é mais afastado. Foi até orientação do clube por precaução. Passei dois ou três dias dormindo no CT, aí viajamos para a Espanha para jogar a Europa League e, quando voltamos, estava mais calmo. Aí minha esposa voltou para a Ucrânia também", relatou Danilo Silva.

Em maio, uma briga entre torcedores organizados (os chamados "ultras") por questões políticas (mais uma vez, entre nacionalistas e separatistas) desencadeou 40 mortes em Odessa, cidade cuja localização se dá às margens do Mar Negro e que é a terceira maior do país em população. A confusão ocorreu no mesmo dia em que o Metalist Kharkiv visitou o Chornomorets Odessa.

"Tudo aconteceu como num filme de terror. Nunca esperávamos uma emboscada nessa escala e a polícia fazer tão pouco", comentou um torcedor do Chornomorets, em entrevista a um canal de TV ucraniano. Pedras, bombas e balas de borracha tomaram conta do confronto e um prédio comercial foi incendiado.

Se tal panorama já deixava os atletas temerosos, ele ganhou um agravante: na última quinta-feira (17), um avião da Malaysia Airlines com 298 pessoas a bordo caiu em território ucraniano por ter sido abatido por um míssil terra-ar. Todos os passageiros da aeronave vieram a óbito. Autoridades atribuíram a tragédia a rebeldes pró-russos.

Após o ocorrido, sete jogadores já declararam que não voltarão à Ucrânia enquanto a situação não se normalizar: os brasileiros Dentinho, Fred, Alex Teixeira, Douglas Costa e Ismaily, do Shakhtar Donetsk, e os argentinos Facundo Ferreyra, também do Shakhtar, e Sebastian Blanco, do Metalist. Enquanto os seis primeiros ficaram na França, onde os Kroty fizeram sua pré-temporada, o último está em Buenos Aires.

Com todo esse cenário, fica difícil não pensar que um período de baixa nos clubes locais, especialmente no cenário continental, está por vir. Apesar do momento sombrio, a edição 2014/15 do campeonato nacional está com o pontapé inicial previsto para acontecer nesta sexta-feira (25) e a Federação Ucraniana de Futebol (FFU) não pretende adiá-lo.

"O país inteiro chora diante da tragédia que o assola. É terrível, mas isso não afetará o início do campeonato. Insistimos que o futebol precisa ficar de fora da política", comunicou o assessor de imprensa da FFU, Pavel Ternovoi.

Para esta terça-feira (22) está marcada a Supercopa da Ucrânia, que colocará frente a frente os rivais Shakhtar, atual campeão da Premier League, e Dynamo, atual campeão da copa nacional. O jogo de abertura da primeira divisão será entre Metalurh Donetsk e Dnipro Dnipropetrovsk.

No mesmo dia da queda do Boeing 777 da Malaysia Airlines, o Comitê de Emergência da Uefa proibiu duelos entre clubes ucranianos e russos nas competições europeias por questões de segurança. Também por motivos de segurança, a entidade a qual comanda o futebol europeu havia proibido a realização de jogos em Israel.

"Em virtude da atual situação política, a União de Futebol Russa (RFS) e a Federação de Futebol da Ucrânia (FFU) expressaram preocupação com a segurança, caso equipes russas e ucranianas se enfrentem em uma competição da Uefa", informou a entidade em comunicado. Mesmo assim, as cidades de Dnipropetrovsk, Odessa, Kiev e Lviv estão autorizadas a receber partidas da UCL e da UEL. A situação de Donetsk ainda não está definida.

Os clubes russos garantidos na Uefa Champions League são o CSKA Moscou e o Zenit. Na Europa League estão o Lokomotiv Moscou, o Dynamo Moscou, o Krasnodar e o Rostov. Pelo lado dos clubes ucranianos, Shakhtar Donetsk e Dnipro integram a UCL e Dynamo Kiev, Metalist Kharkiv, Chornomorets Odessa e Zorya Luhansk figuram na UEL.