Steven Caulker, zagueiro do Queens Park Rangers, deu entrevista ao jornal britânico The Guardian em matéria publicada nesta quinta-feira (29) e falou sobre problemas como depressão e vícios em jogos e alcoolismo que afetaram gravemente sua saúde mental, levando-o a refletir várias vezes sobre cometer suicídio, culminando em uma reflexão na relação entre esporte e a vida.

O zagueiro inglês foi elogiado por todos os técnicos e preparadores com quem já trabalhou, sendo que todos citavam o grande potencial que o atleta tinha. Infelizmente, problemas começaram a surgir para que ele pudesse controlar a ansiedade antes de um grande jogo, por exemplo. Um jogador com um potencial grandioso e cheio de talento, mas que contempla o suicídio, ansiedade e auto rejeição. 

Para Caulker, o futebol não permite a compreensão de problemas mentais. Segundo o jogador, há certos obstáculos que impedem que condições como a dele sejam percebidas e entendidas, sendo os principais o medo de perder lugar na equipe e deixar a carreira acabar. Ele percebeu isso quando ainda jogava pelo Southampton.

"Não havia entendimento sobre o que acontecia na minha cabeça. Eu estava ali para fazer me trabalho e ninguém era minha babá. Assim como no QPR, eu precisava justificar o dinheiro que recebia. O futebol não lida bem com doenças mentais. Isso pode até estar mudando hoje, mas não há mecanismos de apoio. Falei com muitos jogadores que receberam a ideia de ir para clínicas, mas recusaram porque sabiam que perderiam a vaga no time. (...) Isso impede as pessoas de pedir ajuda, você se sente obrigado a fazer certas coisas", admitiu. 

O zagueiro disse que sofreu com muita ansiedade, e que seu vício em ganhar e tentar "vencer o sistema" aumentaram a gravidade da condição. Para ele, o futebol não mais conseguia fazê-lo escapar dos problemas, e isso incentivou outros vícios.

"Seja corajoso para dizer que precisa de ajuda antes que seja tarde. Eu precisava me livrar da ansiedade, e quando era mais jovem o futebol me ajudava. Isso mudou a partir do momento em que fui jogar no meu primeiro time e as pressões começaram. Para lidar com isso, comecei a apostar. Sou viciado em ganhar, e apesar de falarem que isso é positivo para o esporte, não se aplica aos jogos de azar. Você se convence que há um sistema e que pode vencê-lo, mas não entende porque não consegue", declarou o inglês.

Uma das partes mais dolorosas da entrevista para Caulker foi contar sobre o jeito que tratava a si mesmo, comportamento que quase levou ao fim de sua vida: "Passei muitos anos me odiando e nunca entendi por que não conseguia ser como todo o resto do mundo. Esse ano quase foi o fim. Por um longo tempo, senti que não havia mais luz no fim do túnel".

Caulker jogou pela última vez em outubro do ano passado, e só há pouco conseguiu melhorar. Desde dezembro, ele não fez nenhuma aposta, e não ingere bebidas alcoólicas desde março deste ano. Para ele, o processo de cura está encaminhado, e a entrevista pode ser um passo a mais na recuperação. Ao tornar pública essa situação, ele acredita que ajudará jogadores mais jovens que passam pela mesma condição a buscar ajuda.

Zagueiro já acordou em delegacia de Liverpool assistindo vídeos de seus atos e não o reconhecendo (Foto: Paul Ellis / Getty Images)
Zagueiro já acordou em delegacia de Liverpool assistindo vídeos de seus atos e não o reconhecendo (Foto: Paul Ellis / Getty Images)

Ele já defendeu as camisas de oito clubes, mas sempre com o sentimento de insegurança e auto-destruição, sem apoio algum: "Passei noites em claro, sentado até cinco da manhã repetindo todas as decisões ruins que fiz e me preocupando sobre a próxima. Aos 18, fui emprestado ao Bristol City e fui morar num apartamento na cidade, rodeado de cassinos e casas noturnas, sozinho e sem orientação alguma. Uma vez um membro da equipe me disse que fui visto no cassino de madrugada, mas só me disse: 'Sua vida fora de campo é de seu interesse. Só não deixe suas performances serem afetadas'".

"Quando voltei para o Tottenham (2013) eu estava apostando e muito, ficando muitas horas jogando. Acho que por que nunca me senti bom o suficiente, nunca me senti no mesmo nível dos outros titulares, mas uma vitória no cassino poderia mudar minha sorte. Ser dispensado dos Spurs me abalou ainda mais, porque o futebol me fazia sentir bem, e foi aí comecei a apostar todo dia. A dor de perder dinheiro combinou com a vergonha e a culpa e isso me consumiu, então comecei a beber. Estava fora de controle".

Por vezes ele acordou em uma cela na delegacia, e, ao lado de seu advogado, assistia gravações de alguns de seus atos. Caulker não conseguia se reconhecer, não lembrava de nada que havia feito. Resultado da ingestão excessiva de álcool. Em certa época, estava sofrendo chantagem para dar dinheiro a donos de clubes, que diziam que contariam o que ele fez à mídia. Sem saber o que fazer, o zagueiro disse ao clube que não conseguiria trabalhar corretamente e que precisava de uma reabilitação. 

Em 2015/2016, o treinador Jimmy Floyd Hasselbaink chegou em Londres para treinar o QPR e isso poderia significar um novo início para o inglês. Contudo, uma contusão no quadril inicialmente inofensiva, acabou se expandindo e acabou levando à quatro outros diagnósticos. "Eu era um dos remanescentes da Premier League, um dos mais bem pagos e que custou £ 8 milhões ao clube, mas não trazia resultado. Minha namorada havia perdido a mãe, e além de estar em luto, tinha de lidar com um viciado. Meu filho morava com a mãe e, por estar na escola, não consegui vê-lo por meses", lamentou. 

"Em janeiro [deste ano], o clube e meu agente tentaram forçar uma transferência para o Lokomotiv de Moscou, e o dinheiro oferecido era tentador para fazer disso um 'novo início', mas por que iria para outro país me virar sozinho quando precisava de ajuda? Pareceu a receita para o desastre. Em um certo dia, me encontrei chorando no escritório do técnico, Ian Holloway, e ele me deu um puxão de orelha: 'você precisa se compor, garoto'. Sou grato por isso", acrescentou o jogador que já foi convocado para o English Team

Falando sobre o período mais escuro de sua vida, em dezembro do ano passado, Steven relembrou como aceitou que não havia maneira de vencer um problema apostando, além de declarar que o suicídio ficou bem próximo de acontecer naquele tempo. "Eu tive uma última aposta em dezembro do ano passado, onde perdi muito dinheiro. Um último vacilo. Foi naquele momento que eu entendi que eu não poderia vencer; que nenhum problema no momento se resolveria rapidamente com uma noite no cassino", revelou.

"Contemplei suicídio naquele período. Um tempo sombrio. Tudo que eu havia vivido no futebol, para onde me levou? Toda a decepção, vergonha pública, a humilhação nos jornais... e por quê? Posso ajudar meu filho a viver bem, posso ter feito muitos trabalhos na África e comprado propriedades para minha família, mas eu estraguei todo o resto. Reconheço que perdi 70% do que ganhei na carreira futebolística e quando se perde esse tanto de dinheiro, a culpa... de quantas vidas poderiam ter sido mudadas. Não tem escapatória, nenhuma saída, se não 'ir embora'", externou. 

Momento de felicidade dentro dos campos: Caulker comemora seu gol pela Inglaterra em amistoso (Foto: Michael Regan / Getty Images)
Momento de felicidade dentro dos campos: Caulker comemora seu gol pela Inglaterra em amistoso (Foto: Michael Regan / Getty Images)

Sem apostar desde o último mês de 2016, Caulker continuou bebendo para tentar aliviar os problemas, o que acabou aprofundando a depressão, segundo o próprio. Tudo isso, porém, mudaria em março deste ano, quando o atleta teve de pagar uma multa de quase £ 13 mil, além de perder a carteira de motorista por 18 meses por se recusar a assoprar no bafômetro. 

"Eu sabia que havia ultrapassado os limites, mas não queria falar pros meus pais que eu fodi tudo de novo. E se eu tivesse saído do estacionamento, dirigido naquele estado e matado alguém? Não, para mim, deu. Já estive de frente para um juíz por outros quatro ou cinco vezes. Sem mais segundas chances. Da próxima vez, seria preso. Então tomei um tempo para mim, procurei um especialista e montamos um programa, com medicação, para que eu pudesse 'me consertar' depois de ter sido diagnosticado com ansiedade e depressão", disse.

Desde o ocorrido, Steven não bebe mais e conseguiu de uma vez por todas colocar um fim nesses problemas - ou começar a colocar um ponto final. Ele voltou a morar na cidade onde cresceu para entender o que precisou passar para sair de lá, aderiu ao transporte público ao invés de táxis, faz treinos extras, se alimenta corretamente e procura sempre estar bem com si mesmo - físico e mentalmente. "Esses demônios me foderam por muito tempo, mas finalmente sinto que estou melhorando, sinto que as coisas finalmente mudaram", reconheceu. 

Com relação à sua situação no QPR, o atleta disse que seus representantes já receberam avisos dos donos da agremiação que esses não querem mais contar com os serviços do jogador, que ele "não é bem-vindo de volta" restando um ano no seu contrato, mesmo que o treinador tenha dito que quer ajudá-lo e continuar com ele nos seus planos. Porém, esse período de reabilitação fez com que Caulker quisesse algo mais na sua carreira e finalmente poder atingir aquele potencial que sempre lhe falaram. 

"Por muito tempo, odiei tudo sobre mim e eu precisava aprender a me amar novamente. Sinto muita falta de jogar. Não quero que as pessoas escrevam meu nome no Google e só vejam histórias humilhantes. Quero que lembrem-se de mim como um jogador que, aos 20 anos, era bom o suficiente para jogar pelo seu país. Com 40% da minha habilidade, já jogava num alto nível. Agora estou bem mentalmente e quero mostrar a todos, incluindo meu filho, o que eu de fato sou capaz. Sempre que a oportunidade surgir, vou apenas estar grato por estar vivo", completou.