Apesar da origem do futebol no Brasil ser diretamente ligada às elites, o torcedor vive praticamente num mundo paralelo, onde o espaço mais desejado nos estádios não são os camarotes, mas a arquibancada, onde a festa realmente acontece. O que seria de um time sem seus fiéis torcedores apaixonados? Por isso, o maior patrimônio de um clube nunca será as grandes estrelas da equipe ou uma sala recheada de troféus, mas sim, sua torcida. Foram pessoas de todas as cores, raças e aspectos sociais que fizeram o Santa Cruz Futebol Clube se tornar O Mais Querido e O Clube das Multidões. Em comemoração aos 104 anos do Tricolor do Arruda, a VAVEL Brasil reuniu historias que contribuíram para que o Santa Cruz conquistasse a alcunha de Time do Povo.

LEIA MAIS: SANTA CRUZ 104 ANOS: "É sangue, vida, delírio, raça e amor"

Amara Lima, 26 anos

“Meu primeiro, maior e principal exemplo de tricolor vêm de casa, de painho. Um tricolor arretado, absolutamente apaixonado pelo Santinha, que mesmo diante das tantas dificuldades financeiras, como pai de 4 filhos, pedreiro, sempre vivendo com renda mínima, ia aos jogos. Quando a grana não dava ou o jogo era fora, colava o ouvido no rádio e comemorava cada gol como se fosse final de campeonato. E no estádio, quem adivinha qual era o setor que ele gostava de ficar? A geral, claro. Como ele gostava de dizer, com os olhos brilhando: é bem melhor, cabe no bolso, mais animado e quando o Santa faz gol, a estrutura chega treme. Quando amargamos a série D, aí que ele usava o manto coral na rua mesmo. E ai de quem ousasse brincar, dizendo pra ele tirar a camisa! Sofredor, trabalhador, tricolor! Somos legitimamente o Time do Povo, isso é inegável. A história do meu pai se repete geração após geração e assim sempre será. É o povo que mantém o Santa Cruz de pé. É o povo que segura o Santa Cruz quando ele cai. É do povo que vem a força vital que dá vida, faz pulsar o clube que amamos incondicionalmente, nosso Santa Cruz!”

LEIA MAIS: SANTA CRUZ 104 ANOS: Os 10 jogos memoráveis da história do clube do povo

Giovanna Souza, 18 anos

"Desde que foi fundado, o Santa sempre teve essa identificação com o povão, as classes mais pobres, os marginalizados. São inúmeros os aspectos em que isso fica latente, desde o pioneirismo em aceitar jogadores negros, até o fato de ter nascido de quem não tinha vez nos clubes aristocráticos do Recife. O Santa Cruz tem uma história de resistência contínua, e a torcida coral se orgulha em exaltar esse legado. Como eu disse, ao olhar para a história do Santa Cruz, são inúmeras as vezes em que o clube fez jus a esse apelido de Time do Povo, mas a que mais marcou, na minha opinião, foi a construção do Arruda. Precisávamos de um estádio, mas o clube não tinha condições de construir. Foi feito o chamado ao torcedor: a campanha do tijolo. E pessoas de todas as partes, de todas as classes, surgiam com seus tijolos para ajudar na construção do que viria a ser um dos maiores estádios do Brasil. Eram carrinhos de mão, caminhonetes e carros lotados de tijolos chegando ao local da sede social. Tinha vez pra todo mundo que quisesse ajudar. Como se não bastassem as doações, engenheiros civis, mestres de obra, eletricistas, encanadores e pedreiros trabalharam voluntariamente no decorrer da obra do Arruda durante suas folgas, à noite e nos finais de semana. Em nome de um amor, pessoas de classes sociais totalmente distintas se uniram. O suor da nação, composta por loucos apaixonados, ergueu o símbolo maior da união entre torcida e time. O Santa Cruz é o clube do povo por carregar essa mensagem de união. Na arquibancada do estádio construído por apaixonados, todos nós somos iguais. Não tem classe, gênero, cor ou crença, somos todos Santa Cruz, somos todos parte dessa imensa nação. O Santa Cruz nasceu do povo e, pelo amor do povo, viverá eternamente."

Thiago Vieira, 20 anos

“Enquanto eu fiz o documentário O Time do Povo, procurei encontrar episódios isolados que ilustrassem a alcunha que o time carrega. Mas percebi que, na verdade, não são casos pontuais. Mas sim toda a sua construção como identidade. Da fundação numa praça pública, da inclusão do negro, da popularização entre os brancos trabalhadores pobres e por aí vai. Mais do que isso, o Santa Cruz ainda advoga para manter perto quem o futebol tenta cada vez mais colocar longe. Não tenta tratar o torcedor como cliente e sim como parte fundamental do clube. E a torcida entende que ser o Time do Povo não é uma característica, mas sim uma condição fundamental para a existência do Santa Cruz. E se um dia essa raiz for perdida por completo, o clube também será.”

Priscilla Silva, 36 anos

“Alexandre Carvalho disse, “O Santa Cruz nasceu e viverá eternamente”, em 03 de fevereiro de 1914, dia e ano da fundação do clube das massas. Nascido do anseio de jovens de diferentes classes e etnias, em jogar o esporte até então de exclusividade da elite, o Santa Cruz surgiu para romper barreiras e constituir um paradigma costumeiro entre os santacruzenses – não deixamos morrer nossa identidade tricolor. Como numa montanha russa, o clube vive de altos e baixos, em menos de um milésimo de segundo – vai de vitórias milagrosas a rebaixamentos vergonhosos, arrebentando o coração tricolor. Dormimos tristes após as derrotas, e acordamos com a certeza de vestirmos nossa melhor roupa – o manto coral. Pois, só quem é povo sabe, para existirmos temos que resistir. E é resistindo, que o time do povo arrasta multidões e corações apaixonados ao Arrudão.”

Lucas Pinto, 26 anos

"Ainda era uma criança, acho que início dos anos 2000. Era um fã de Nilson, tinha uma camisa “piratex” da branca e uma touca de renda coral, uma "maloqueiragem", mas que eu achava massa. Acredito que o fato foi após um jogo do Pernambucano, pois era uma segunda-feira, lembro nitidamente. Tem um restaurante de comida japonesa na Encruzilhada que se chama Tepan. Já está por ali há décadas. Além de ser um lugar rotineiro para mim e minha família, a parada era obrigatória antes e depois dos jogos no Arruda. Nesse pós-jogo, dia de semana e tarde da noite, depois de me esgoelar com o Santa, comer alguns sushis e passar horas ouvindo meus pais conversando com meus padrinhos mil e uma coisas que eu não entendia, a conta foi paga e chegou a hora de ir embora. Eu já agoniado, sai na frente, viajando no jogo, simulando nosso goleiro pegando as bolas, narrando gols que nem saíram. Quando me aproximei do nosso carango, o pessoal do carro vizinho também estava chegando para ir embora. Me encostei na porta traseira, todo largado, sandália, uma calça coronha, camisa pirata e a bendita touca que era a cara da Geral do Arruda, sujo no nível “pirraia virado na arquibancada” e fiquei esperando. A mulher já, praticamente com metade do corpo dentro do carro, olhou para mim e fez uma cara de surpresa, de quem tá fugindo sem pagar... E para ela, era isso mesmo. Me pediu desculpa e na maior naturalidade do mundo sacou sua bolsinha de dinheiro. Ofereceu e ficou com aquele sorrisinho contido na cara, e eu com um maior ainda no meu rosto, pois não estava entendendo nada. Numa fração de segundos, com o meu silêncio em uma total falta de ação a não ser olhar pra ela rindo, se irritou. Ficou abanando o braço como quem implora e obriga ao mesmo tempo, com o dinheiro na mão, “oxe, quer não é?!”, “não”. Parece que foi pior, a mulher fez uma careta, numa ojeriza tremenda. Nesse momento minha família já tava chegando e percebeu a situação. Aí virou greia na mesma hora, “Vai Lucas, vai pegar o dinheiro do carro não, é?!”. Eu vi a mulher ficar vermelha, branca, roxa, verde... Já estava rindo, ai foi que gaitei mesmo. A dita cuja pedindo mil desculpas, entrou no carro e partiu. Já comigo, foi resenha o caminho inteiro e até hoje tiram onda com essa história. “Fica aí andando com a camisa do Santa, a turma pensa logo que é da rua”. Foi a última frase que ouvi naquela noite. E era a moral da história mesmo. Durante muitos anos levei como um fato engraçadíssimo que aconteceu comigo (e é mesmo, até hoje a galera se abre com isso), depois passei mais algum tempo remoendo o preconceito com a nação, mas no final das contas, cheguei ao degrau do orgulho, da maior satisfação possível em fazer parte, em ser, do povão, do Santa Cruz.”