A rotina da técnica Emily Lima mudou radicalmente de novembro de 2016 a setembro de 2017. Nesse período, coube a ela preencher a escrita da primeira mulher a comandar a Seleção Brasileira Feminina, marco histórico para a modalidade. No fim do mês passado, Emily foi demitida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com menos de um ano de trabalho, tempo que todos os seus antecessores tiveram.

No comando da Seleção, a treinadora conquistou sete vitórias (nos sete primeiros jogos), um empate e cinco derrotas, revezes que foram decisivos para a sua saída. Responsável por conduzir a equipe após a Olimpíada de 2016 e com um novo ciclo olímpico pela frente, Emily não chegou a disputar nenhuma competição oficial. Em um novo momento na carreira, a ex-treinadora da Seleção Feminina conversou com a VAVEL Brasil.

Ambições e começo

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

Emily foi contratada para assumir a Seleção no começo de novembro de 2016. Com ela, foram admitidos Guilherme Giudice (assistente técnico), Jairo Porto (preparador físico), Julio Resende (analista de desempenho), Izaque José (preparador de goleiras) e Sandra Santos (coaching). Logo no começo, teve diante de si o Torneio de Manaus, o qual venceu ao bater a Itália na decisão.

VAVEL - Quais ambições você tinha quando foi contratada pela CBF? O que espera fazer dentro do elenco das meninas?

"Minha ambição era dar continuidade ao que venho fazendo há 25 anos, fazer com que a gente pudesse ver as meninas sorrindo no final do jogo. Mas, hoje, também penso que às vezes elas [atletas] escolhem chorar. Depois da minha saída, comecei a ver muita coisa, porque vivi junto com elas, e hoje escuto alguns discursos contraditórios. É uma escolha que cada um faz. Às vezes, elas escolhem chorar, e minha escolha para elas não era voltar a vê-las chorando e pedindo apoio".

VAVEL - O que você e sua comissão buscaram fazer logo que o cargo de treinadora da Seleção chegou às suas mãos?

"Nós fizemos um mapeamento para entendermos onde estava o futebol feminino, e ele estava em 19 dos 27 estados brasileiros. Vimos que tinha muitas equipes jogando, muitas competições e ligas, e a partir daí fomos descobrir quando cada campeonato aconteceria. Começamos a buscar, e, dentro dessa busca, colocamos no nosso calendário as competições e os jogos e passamos a viajar e conhecer um pouco mais dos torneios, das atletas e do que estava sendo desenvolvido dentro do estado".

Futebol feminino na CBF

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

VAVEL - Agora, você volta a olhar para a CBF estando do lado de fora. Mas, quando esteve lá, viu falhas na instituição na forma de tratar e conduzir o futebol feminino?

"Eles [CBF] não veem o futebol feminino como um todo no país. Tem pessoas ali dentro que não gostam mesmo da modalidade. Nossos telefones lá são registrados e as pessoas viam quando eu estava ligando. Muitas vezes, simplesmente não atendiam. Eu sabia que estavam lá, mas não atendiam. É um desrespeito total. Isso é um dos fatores".

VAVEL - Algum exemplo positivo no país...

A Federação Paulista, a partir do momento que Reinaldo (Reinaldo Carneiro Bastos, presidente da FPF) aprendeu a ver o futebol feminino com outro olhar, ele percebeu que dá para desenvolver a modalidade, e por isso que está sendo o sucesso que está. É preciso pessoas que gostam, que vão fazer por amor e não por status ou dinheiro. A instituição CBF não é a grande culpada, mas as pessoas que trabalham lá". 

Modalidade amadora

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

O futebol feminino é uma modalidade amadora no Brasil porque os clubes assim o são. Apenas América-MG, Sport, Santos e Iranduba são profissionais de fato, e isso por abrigarem atletas sob regime celetista e assinarem as carteiras de suas jogadoras.

A (ir)realidade do futebol feminino profissional no Brasil

VAVEL - Futebol feminino no Brasil não é considerado profissional. Como as atletas devem encarar e encaram isso? 

"Desde atleta, sempre tratei o futebol feminino como profissional, sempre. Então vivenciei como atleta, hoje como treinadora, e sempre considerei como profissional porque sempre me impus dessa forma. Quando a gente pede, pede sempre o melhor, o profissionalismo. O problema é que a cobrança é como profissional, mas o respaldo e a ajuda não são como profissional.

Parte do que acontece com o futebol feminino no país também é responsabilidade das atletas, e eu também me incluía nisso quando atleta. Se jogadoras não se unirem e brigarem pela melhora da modalidade, fica muito difícil. Sem atleta, não tem futebol". 

VAVEL - A CBF afirma que a responsabilidade de tornar a modalidade profissional é dos clubes a partir do momento que eles tomam esse caminho. Quem, de fato, deveria correr atrás da profissionalização da modalidade?

"Eu falo muito das escolas, das faculdades, que é o que acontece nos EUA e está enraizado. Acho que deveria vir daí, e depois as federações terem as competições para que as meninas fizessem a transição. Já que não existe isso aqui, todos podem contribuir, tanto CBF quanto federações. As entidades maiores poderiam contribuir muito mais que contribui. Eu estive lá dentro, e é possível, sim, ajudar mais. Só não ajudam porque não estão a fim, e isso está muito claro para mim. As federações poderiam ser ainda mais bem orientadas pela CBF

Hoje, temos um cargo de coordenação que antes não tinha. Sendo um coordenador que tem conhecimento do futebol feminino, ajudaria muito. Eu converso muito com treinadores, presidentes, gestoras e gestores, e eles sempre têm as mesmas reclamações. Isso é falta de orientação da entidade maior. Ela poderia entrar muito mais no futebol feminino do que entra, porque eles acham que o feminino é como o masculino".

Aposentadoria de algumas atletas

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

Depois que a demissão de Emily foi anunciada, algumas atletas manifestaram seus desligamentos da Seleção Brasileira. A primeira delas foi a atacante Cristiane, que comunicou a decisão de não mais vestir a camisa do Brasil.

"É a decisão mais difícil que tomei na minha vida profissional até hoje. Pensei durante muitos dias, não me manifestei até agora. Falei com minha família, com meus amigos, escutei vários pedidos para que eu pensasse, mas eu não vejo outra alternativa por todos os acontecimentos e por coisas que já não tenho forças para aguentar. Hoje, se encerra meu ciclo na seleção brasileira", disse a atacante por meio de seu Instagram. 

Também se aposentaram da Seleção a zagueira Andreia Rosa e a meia Francielle, além das laterais Rosana e Maurine. 

VAVEL - Após a sua saída, você se surpreendeu quando algumas jogadoras anunciaram aposentadoria da Seleção?

"Comecei a me surpreender quando a Cristiane, um ícone do futebol feminino, se expôs a esse ponto, porque ela já tinha vivido anos com essas mesmas dificuldades, e de repente disse 'chega'. Ela mesma fala que não é nada contra o Vadão ou a comissão que está vindo, e sim o desrespeito que a CBF teve no movimento que elas fizeram. Elas fizeram movimentos antes dos jogos, porque já imaginavam que isso poderia acontecer, depois do jogo fizeram movimento com o coordenador, e depois a carta de 26 atletas, em que 24 assinaram, com entrega nas mãos do presidente [Marco Polo Del Nero]".

VAVEL - Então acredita que elas se desligaram da Seleção devido à sua saída ou que sua demissão foi um estopim?

"Tudo o que aconteceu, esse movimento que Cristiane fez, Rosana, Fran, Andreia, junto com Sissi, Márcia Taffarel, Formiga, enfim, todas essas meninas que se mobilizaram, não foi pela minha saída, mas porque não escutaram o que elas pediram. Acho que elas cansaram e perceberam que era o momento de buscar o respeito delas. Mas foi a minoria da minoria, e a maioria se calou mais uma vez. As pessoas pensam muito no 'eu' e não na modalidade em si".

Marco Aurélio Cunha

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

Desde a saída de Emily do comando da Seleção, foi externada a relação turva entre o coordenador de futebol feminino da CBF, Marco Aurélio Cunha, e a ex-técnica do Brasil. Emily já chegou a dizer que, enquanto ocupava o cargo no qual não mais está, não tinha respaldos de Marco. Ele, por sua vez, outrora pontuou que deu a ela condições de trabalho suficientes para o desenvolvimento de sua função.

VAVEL - Quem foi o Marco Aurélio Cunha para você enquanto comandou a Seleção Brasileira?

"Marco Aurélio é uma pessoa que está em um cargo importante e que não dá tanta importância para a modalidade. Eu cheguei na CBF, e não tinha nada, nada mesmo, e nós começamos a montar o quebra-cabeças. Criamos vários dados que hoje estão lá nas mãos deles, e espero que seja usado". 

VAVEL - Quebra-cabeças...

"Por exemplo, o fisiologista fez uma relatório para nós, para sabermos em que nível estávamos, 2013 até 2016. Em 2013, foram duas avaliações, em 2014, véspera de Mundial, nenhuma avaliação física, em 2015, duas ou três, e em 2016, duas com a Seleção Permanente. A nossa, de novembro a outubro, teve uma completa, com toda a avaliação física, e sete avaliações de percentual de gordura e teste de salto. Tudo deu a entender que trabalhar demais ali era um grande problema. Em dez meses, fizemos o que não fizeram em quatro anos.

Isso não só um descaso da CBF, mas sim dos profissionais que ali passaram, que não davam a mínima. Isso preocupa. Quando você coloca alguém que briga pelo certo e pelo que conhece, eles tiram mesmo. Ou você se junta, ou sai fora. E foi o que aconteceu comigo".

E agora, Emily?

Fotomontagem: Isabelly Morais/VAVEL Brasil

VAVEL -  Quais planos você tem para a sua carreira agora?

"No final do ano, terminarei minha licença A, estava meio parada pela Seleção, e no ano que vem já começo a minha licença Pró. Quero ir para fora, meu empresário está estudando algumas coisas, e disse a ele que meu foco era sair do país neste momento. Eu só aceitaria alguma coisa aqui que fosse muito certa, de médio ou longo prazo, em que pudesse desenvolver a modalidade nesse lugar. Se não for assim, só fora do país.

Vou pensar mais na Emily treinadora, porque penso muito na modalidade, em ajudar o desenvolvimento, mas as pessoas não estão preocupadas com isso, elas pensam só no 'eu' e não nos outros. Já achava, mas hoje tenho certeza que  parte do motivo do futebol feminino ser o que é, é por conta das atletas. Elas têm um valor que não sabem que têm, porque nunca utilizaram".

VAVEL - Então pensa que pode haver um maior movimento por parte das atletas?

"Estamos vendo mobilizações na Itália, Noruega, Dinamarca, onde jogadoras até se recusaram a jogar. Também nos EUA, para a igualdade de gênero. Nós, com a oportunidade nas mãos, deixamos mais uma vez passar. Ouvimos o coordenador falar que a CBF sabe o caminho do futebol feminino, e eu temo por esse caminho, porque se for mesmo o que ele está dizendo, é complicado. Temo quanto a isso, mas é um problema que eles têm que resolver. Torço sempre pela Seleção, mas hoje vou focar um pouco mais em mim".

VAVEL - Você retornaria para a Seleção Brasileira?

"Neste momento, não. Tenho que fazer o que gosto e ter liberdade para isso, e lá não tinha muita pra realizar o que gostaria em relação à modalidade. Eu não pensava só na Seleção, pensava na modalidade. Quem sabe daqui a dois, três, cinco, dez anos eu possa pensar, porque não sei o que vai acontecer. Imagina se uma seleção me convida e eu fico lá por anos?!

"Acho que Seleção, hoje, não é minha prioridade, todos os outros seriam prioridade. A não ser que mude tudo lá dentro, mude conceito de ideias, aí acho que aceitaria. Hoje é o momento deles [Vadão e sua comissão técnica], e torço para que consigam desenvolver um trabalho que não foi desenvolvido nos dois anos e meio que ficaram lá".

Mais que ex-técnica do Brasil, Emily é treinadora de futebol e vai buscar novos caminhos (Foto: Isabelly Morais/VAVEL Brasil)