Sobrevivência. Ato ou efeito de sobreviver, de continuar a viver ou a existir. Continuidade, persistência, duração. Existência após a morte. Esses são termos didáticos escritos em páginas de dicionários. Mas em vida, reflete-se na trajetória do jornalista Rafael Henzel, um dos sobreviventes do acidente aéreo envolvendo a Chapecoense. Da queda literal ao recomeço pessoal, a história ganha contornos de superação e inspiração quando se completa 1 ano do acontecido.

Henzel foi o terceiro resgatado pelas forças colombianas após o acidenteA tarde fria da cidade de Chapecó é o cenário onde Henzel lembra de tudo que passou: a primeira partida oficial na Arena Condá contra o Palmeiras; a ida ao Camp Nou para amistoso contra o Barcelona; a permanência heroica da Chapecoense na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Mesmo com tantas mudanças, a maior está na memória do jornalista: os dias que sucederam o ocorrido e o retorno dos sobreviventes.

"Acho que o momento de maior mudança e dor eu não estive presente. Foi quando ocorreu a tragédia e nos dias seguintes. Nossa volta trouxe um pouco de alívio e esperança. Mas por muito tempo acredito que as pessoas vão lembrar, se emocionar. A lembrança ficará, mas é preciso seguir. Nossa vida precisa seguir", declarou.

Henzel carrega duas datas marcantes em suas redes sociais: as datas de nascimento e renascimento. Seu aniversário é dia 25 de agosto, mas nasceu de novo no dia 28 de novembro. Ele faz questão de lembrar como resistiu à queda, à hipotermia, às costelas quebradas e aos pulmões perfurados. Mostra com orgulho tais dias. É um novo nascimento e uma forma de seguir em frente, como o próprio conta.

"Desejo seguir minha vida com minha família e amigos. Seguir no meu trabalho que tanto gosto. E que possa ser justo com as pessoas, sempre. Agradeço a Deus por me dar uma segunda chance e farei o possível para levar a mensagem de fé, esperança e vida para todos", revelou enquanto mostra as datas que guarda com carinho.

(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal

A emoção volta à tona quando lembra do amistoso contra o Palmeiras, dito por ele como o momento de maior emoção neste ano que passou. As lágrimas de Henzel se misturam com a lembrança de quando esteve presente na Arena Condá, reencontrando os familiares de cada jogador que estava com ele dentro do avião. Entre o choro e a dor prematuros, foi a primeira vez que a ficha caiu.

"O momento foi o primeiro jogo da Chapecoense. O amistoso contra o Palmeiras reuniu os familiares dos mortos na tragédia. Foi um dia de muita emoção, de dor. Cada familiar recebeu a medalha da conquista da Copa Sul Americana e o choro foi inevitável. Afinal, era a primeira vez que sentia essa dor pessoalmente", relembrou.

Henzel estava sentado na penúltima fileira do avião, na poltrona do meio, e os dois colegas ao seu lado morreram na queda. Ele foi o penúltimo a ser resgatado no dia, quando os colombianos já imaginavam que todos os sobreviventes haviam sidos retirados dos escombros.

(Foto: Getty Images)
Foto: Getty Images

A vida depois do acidente

Dos profissionais da imprensa que estavam a bordo, num total de 22, sobreviveu apenas Rafael Henzel. Ele chegou consciente ao hospital San Juan de Dios de La Sierra, mas diagnosticado com problema respiratório severo, com fraturas múltiplas de costelas, lesão no corpo e na pele. Passou 15 dias conversando com os psicólogos colombianos para voltar a si. Medo de entrar novamente em um avião? Entender as causas do acidente foram fundamentais para superá-lo.

Henzel passou sete horas desacordado entre os escombros

"Eu preciso viajar para trabalhar. O Brasil é um país gigantesco. Superei esse medo porque sei as causas do acidente. Isso não vai mais ocorrer. Conversei com psicólogo apenas nos 15 dias internado na Colômbia. Depois disso segui minha vida", revelou o jornalista que segue viajando pelo país para transmitir as partidas da Chapecoense pela Oeste Capital, rádio local da cidade.

Ele voou. Voltou ao Brasil, para os braços da família e do povo que torceu por sua recuperação. Henzel viu, meses depois, Alan Ruschel voltando a atuar profissionalmente. É o gancho que o faz lembrar de um feito até simples, mas importante para o mesmo: quando pôde jogar bola com seus amigos. Não apenas os jogadores, mas o jornalista também recuperou-se e voltou a chutar a bola. 

"É algo tão simples jogar futebol. Correr atrás da bola com os amigos. Mas para mim representava mais. Era um passo que eu dava buscando confiança. Mesmo com o ferimento que tive no pé, ou com as costelas quebradas, consegui voltar. Estou firme e forte", lembrou, recuperado das sete horas que passou em meio aos escombros.

Recentemente, o jornalista lançou o livro "Viva como se estivesse de partida", onde conta momentos vivenciados antes e depois do acidente. Lembra que ninguém no avião foi informado de que havia um problema sério na aeronave antes de ela bater no morro. Entre outras histórias, compartilha a jornada de gratidão pela dádiva da vida que traçou a partir do momento do resgate.

"O livro traz cronologicamente tudo que aconteceu comigo desde o dia do acidente. Como me recuperei, a importância das pessoas em minha vida, o apoio de minha família. Como uma pessoa que sofreu um acidente aéreo está firme e forte no seu trabalho e sua vida. O livro traz estas informações. Tenho a certeza que só vamos mudar quando resolvermos mudar os nossos conceitos. Mais paz, menos intolerância, mais respeito", conta.

(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal

Chapecoense

A Chapecoense disputou o Campeonato Brasileiro de 2017 sem estar protegida do rebaixamento. A ideia era criar uma imunidade de três temporadas, mas foi descartada. Mesmo sem a proteção, a Chape escapou após vencer o Vitória por 2 a 1, na 35ª rodada do torneio. Henzel mostra sua camisa com as 71 estrelas, feita em homenagem às vítimas do acidente, e classifica a permanência como fundamental para o clube, para a região e para a memória do acontecido.

Chapecoense está há cinco anos na Série A e não foi rebaixada

"Seria uma punição muito grande para toda a região o desaparecimento da  equipe. Era preciso honrar minimamente tudo aquilo que foi conquistado dentro e fora da campo. O futebol  no futuro dependeria muito de como o time vai reagiria neste final de campeonato brasileiro. A permanência foi fundamental. Independentemente de tudo, eu seguiria o time em todas as séries do futebol Brasileiro", declarou.

Mas nem tudo foram flores no caminho da Chapecoense. Da eliminação na Libertadores por erro da comissão até a demissão do técnico Vagner Mancini, o que gerou revolta da torcida, o caminho foi duro. Henzel lembra que 'o Brasil é o chamado país do futebol, mas mais pelas conquistas até 1970 do que outra coisa'. Ou seja, a cobrança por resultados é firme, mesmo após uma tragédia. 

"Há muita pressão por resultados. Alguns criticaram a Chapecoense por estar fazendo um campeonato fraco, como se o ano fosse normal. Eu sempre fui ligado a Chapecoense por representar a cidade e a região. Minha vida é seguir nessa cidade e sempre, mesmo com minhas limitações, manter a chama da Chapecoense acesa com minha voz", apontou.

Henzel conta outro momento marcante: sua ida a Barcelona. A partida era válida pelo Troféu Joan Gamper e a Chapecoense terminou perdendo de 5 a 0. No entanto, o resultado foi o que menos importou. Foi a realização de um sonho para o jornalista que pode conhecer o  CT do clube e esteve com sua família nesta viagem internacional. 

"Foi especial estar lá. Minha família estava comigo. Narrar um jogo do Barcelona, na apresentação do time, é um sonho da maioria dos profissionais. Conhecer toda a estrutura também foi especial. Mas o mais importante foi a volta de Alan Ruschel que iluminou a vida de muitas pessoas pela esperança e superação que demonstrou", disse.

(Foto: Sirli Freitas/Divulgação/ND)
Foto: Sirli Freitas/Divulgação/ND