Quem viu e quem vê o Benfica, estranha: quais a razões para, depois de uma excelente época, manchada apenas na ponta final, o clube da Luz estar mergulhado numa crise exibicional que perdura desde o início da temporada? Analisando cuidadosamente factos, hábitos e sistemas tácticos, somos confrontados com um diagnóstico, no mínimo, bidimensional: psicológico e táctico.

Estas duas dimensões do problema benfiquista estão correlacionadas, afectando-se e fomentando-se de modo recíproco. No cenário actual, o Benfica leva 11 jogos oficiais: 8 em contexto nacional e 3 no plano internacional. Na Liga Zon Sagres já deitou por terra 7 pontos; na Liga dos Campeões, perdeu 4. Mas, apesar dos resultados geralmente medíocres, as exibições, mesmo em caso de vitória, têm, impreterivelmente, surpreendido pela negativa: meio-campo desligado, moroso, despovoado, com transições ofensivas perras, pouca acutilância na penetração das jogadas e uma carência defensiva estrutural, que começa na fraca pressão do ataque encarnado, se infiltra no meio-campo sem resguardo e acaba num sector defensivo que se descoordena à primeira falha da conjuntura táctica exibida em campo, facto a que não é alheia a subida tresloucada dos laterais encarnados.

  • Dimensão psicológica

Este plano é, à partida, de percepção imediata e à luz das teorias sociológicas mais ventiladas, a sua concepção enquanto problema deveria ser considerada, pelo menos, ponto inaugural de análise: este Benfica é o mesmo Benfica que tudo perdeu em 2012/2013. O mesmo Benfica que esteve à beira de vencer tudo, e acabou a época de sonho em trágico e inesquecível pesadelo. Depois de uma desgastante temporada, perder tudo nos últimos minutos (repetidamente) causa uma cratera psicológica difícil de cobrir – quer seja nos adeptos, na equipa ou no treinador. A equipa do Benfica, sedenta de títulos (Jesus levava 4 temporadas com apenas 1 liga conquistada), viveu cada minuto à flor da pele: os precoces festejos na Madeira e os igualmente precoces esgares de perdição no empate contra o Estoril reflectem um consciente colectivo desejoso e inseguro, antecipando emoções e vivendo no limbo da frustração, depois de se terem criado expectativas enormes. Perder tudo fez com que o plantel visse em Jorge Jesus um líder perdedor: os actos de contestação (quer de Cardozo quer de Enzo, na final da Liga Europa) são uma amostra do rompimento do mutualismo entre técnico e futebolistas. A pré-época revelou um Benfica padecendo da maleita que o assolou no final da época transacta: jogo triste, lento, desaventurado, previsível, desleixado, sem fulgor nem disponibilidade. Até no próprio treinador se denotaram mudanças comportamentais que espelham o cansaço, o nervosismo e a precipitação (caso de Guimarães). O diferendo com Cardozo, perdido, enfraqueceu ainda mais a autoridade do responsável técnico.

  • Dimensão táctica

Neste plano também não existem segredos: o Benfica distribui-se em campo da mesma forma que o fazia o ano passado. Então, porquê tantas diferenças exibicionais? Para responder a esta pergunta, é necessário primeiro analisar a táctica de Jesus e assimilar o que logo salta à vista: um meio-campo isolado com apenas 2 jogadores entre uma linha de 4 defesas e 4 avançados, portanto um 4-2-4 assente em laterais ofensivos, extremos que actuam colados à linha, um ataque com dois homens (um estático e outro multi-funções) e um centro do terreno com 2 médios condenados a varrer o meio-campo de lés-a-lés, defendendo e carregando a bola para o ataque, tarefas que exigem imenso pulmão e uma versatilidade táctica imensa. Este sistema é, pois claro, desequilibrado.


 

Demasiado ofensivo em termos posicionais, periclitante no que à posse de bola diz respeito e arrítmico no que toca ao controlo dos diferentes períodos do jogo – a explicação destas pechas está no meio-campo, solitário e desapoiado, entregue a Matic e Enzo. Sempre que o Benfica enfrenta equipas que coloquem 3 (ou mais) jogadores no miolo, o controlo do jogo desvanece: o jogo contra o Sporting, para dar um exemplo recente, foi a simples tradução disto: Adrien, André Martins e William Carvalho trancaram a primeira zona de construção do Benfica, fechando os espaços, pressionando o portador da bola e ganhando na superioridade numérica a maioria dos duelos. Com o FC Porto tal «vício» é recorrente: João Moutinho, Lucho e Fernando estavam habituados a manietar os meios-campos de Jesus com relativa facilidade. O 4-3-3 portista estava apetrechado para dominar o terreno e controlar o ritmo e a volição do jogo: Fernando destruía e recuperava, Moutinho fazia de «box-to-box», elo de ligação com um pé no apoio defensivo e outro no ofensivo, enquanto Lucho dava maior profundidade aos movimentos atacantes. Então, com tantas insuficiências, como pôde o Benfica (quase) singrar o ano passado?

A resposta invisível talvez esteja no «quase», a chave da equação. Apesar de ser estruturalmente deficitário, o Benfica teve e tem jogadores de alto gabarito, capazes de se superiorizarem facilmente aos demais. As equipas de Jesus são impetuosas e geneticamente programadas para atacar incessantemente, sem refreio nem cautelismo (relembre-se o golo sofrido aos 92 minutos no Dragão), mas o facto é que, engrenando, conseguem arrancar exibições de encher o olho, sublimes até. Jesus, sendo um técnico altamente competente, desenha as suas formações para subjugar o adversário, e consegue-lo, mas não estrutura a equipa para aguentar o impacto do seu próprio tipo de jogo, nem salvaguarda automatismos tácticos que permitam ao Benfica resfriar o jogo, trocar a bola largos períodos sem se descompensar, controlando assim os tons da partida.

O 4-2-4 funcionou bem na Liga porque a assimetria entre FC Porto e Benfica e os restantes clubes era por demais evidente – Matic e Enzo, ambos numa forma espectacular, foram chegando para a encomenda – mas na Liga Europa as diferenças, ainda que contra (boas) equipas de segunda linha internacional, foram visíveis. Newcastle, Leverkusen e Fenerbahce enviaram um grande número de bolas ao poste e foram sempre uma ameaça incontrolada: o Benfica sentiu, com todas elas, imensas dificuldades. Se recuarmos ao Grupo G da Liga dos Campeões, verficamos que as mesmas dificuldades foram sentidas contra Celtic e Spartak Moscovo. Jesus edificou um Benfica apto para nível interno, menos contra o FC Porto, constante pedra no sapato. O resto foi talento, magia, rasgo, finta, insistência e garra; falta a estrutura táctica (e logo, psicológica) dos campeões: estabilidade, controlo, posse e harmonia entre sectores. O hercúleo esforço que o Benfica fez na época passada está a pagá-lo agora – a derrota trouxe cansaço físico e psicológico. Basta olhar para Enzo e Matic para perceber que não são os mesmos de outrora (ver vídeo do golo do Olympiakos e focar a (não) recuperação displicente de Enzo).  

O «joker» Ramires

Jesus é um homem de ideias fixas: desde que chegou ao Benfica que nunca abdicou deste estilo táctico, mas na primeira época beneficiou de um elemento crucial que pela sua proficiência táctica, versatilidade infinita e pulmão de sobra, lhe equilibrou o onze e lhe permitiu ter o melhor Benfica da era Jesus: falo de Ramires. Com o brasileiro encostado ao lado direito, Jesus tinha um jogador que dava largura ao flanco, auxiliava Javi Garcia na zona defensiva, construía jogadas pelo interior e chegava a pontos de finalização. Sem esse pilar multi-facetado, Jesus perdeu uma estabilidade que nunca voltou a buscar. Tê-lo-à nunca percebido? Talvez a última época, repleta de vitórias, tenha ajudado à continuação da ilusão. Mas três derrotas na «hora H» nunca são por acaso – no «quase» da época passada está a explicação estrutural, tanto deste Benfica actual como do Benfica de Maio. Sem estrutura táctica não há estrutura psicológica, e sem poder de encaixe emocional também não há táctica que resista. 

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