Não é novidade para ninguém que a Alemanha é uma potência (também) no futebol. Porém, tal como acontece noutros países, sofreu com a falta de talento de algumas gerações, participando em eventos internacionais com equipas muito aquém do que se exige a um país com a sua população, com o seu nível de desenvolvimento e, sobretudo, com o orgulho do seu povo.

Depois das excelentes participações da Alemanha no Euro’96 e do Borussia Dortmund na Liga dos Campeões 96-97, que culminou com vitórias alemãs nas duas contendas, o futebol do país entrou numa espiral negativa. Na Bundesliga, ano após ano a diferença entre Bayern München e restantes equipas crescia, fazendo do campeonato local uma competição cada vez menos competitiva. Entre as épocas 1998/99 e 2005/06, os bávaros venceram a liga local por seis vezes, numa supremacia apenas interrompida pelos triunfos ocasionais de Borussia Dortmund (2001-2002) e Werder Bremen (2003-2004).

A supremacia interna do FC Bayern andava de mãos dadas com uma crescente entrada de jogadores estrangeiros na 1.Bundesliga, com valores recorde no virar do século. Daí que os efeitos mais nefastos do declínio do futebol alemão neste período se tenham feito sentir ao nível da Mannschaft. O Mundial’98 terminou para a selecção alemã nos quartos-de-final, caindo com estrondo diante da surpreendente Croácia (0-3). Quem esperava uma forte reacção no Euro’2000 – jogado praticamente em casa – não podia estar mais enganado.

A Alemanha, liderada por Lothar Matthäus (então com 39 anos), ficou-se pela primeira fase, num grupo que contava ainda com Portugal, Inglaterra e Roménia, naquela que é vista por muitos como a pior prestação de sempre da Mannscahft numa fase final de uma grande competição (apenas um ponto e um golo marcado). O último lugar do grupo e a pesada derrota no derradeiro e decisivo jogo para as hostes alemãs, diante uma equipa portuguesa repleta de suplentes, foram um forte murro no estômago dos confiantes adeptos alemães. Quatro anos depois, no Euro’2004 realizado em Portugal, a Alemanha voltava a cair na primeira fase. Mas aí, o alerta já há muito havia soado e o processo revolucionário já estava em andamento.

A Deutscher Füssball-Bund (DFB) criara um plano que passava por uma forte aposta na formação. O projecto, a nível nacional, tinha como aliados os 36 clubes da 1.Bundesliga e da 2.Bundesliga e traçava um novo caminho depois da rápida identificação do retrocesso do futebol alemão. Nem o segundo lugar no Mundial’2002, marcado por uma Alemanha muito prática mas pouco convincente, precipitou o ‘arquivamento’ de um projecto que visava um rápido rejuvenescimento do futebol alemão.

Os resultados estão à vista e os números são esclarecedores. Dos 525 jogadores inscritos na Bundesliga em 2011, 275 (52,4%) fizeram formação nas academias alemãs (Werder Bremen, com 20 jogadores, e Borussia Dortmund, com 19, destacam-se na 1.Bundesliga). Nesse mesmo ano, que marcou o 10º aniversário da implementação do plano, as equipas da Bundesliga contavam, em média, com 15 jogadores formados localmente. Ao todo foram criados 400 centros de promoção de talentos, construídos mais de 1.000 campos de futebol. A isto junta-se o crescente know-how no país, com formadores devidamente qualificados: 1.200 treinadores de futebol com licença profissional, 5.000 com licença do tipo A, 2.500 com o tipo B, num total de cerca de 9.000 treinadores qualificados.

A ligação entre a formação e as equipas principais foi essencial em todo este processo. Há dois anos atrás, 10 treinadores de equipas da primeira e segunda liga alemãs tinham sido promovidos da formação: Thomas Tuchel (Mainz), Andre Schubert (Paderborn), Marco Kurz (Kaiserslautern), Michael Büskens (Greuther Fürth), Frank Schäfer (Köln), Rico Schmitt (Erzgebirge Aue), Norbert Meier (Fortuna Düsseldorf), Peter Hyballa (Alemannia Aachen), Theo Schneider (Oberhausen) e Marco Pezzaiuoli (Hoffenheim). A estes juntavam-se seis directores desportivos: Helmut Schulte (St. Pauli), Ernst Tanner (Hoffenheim), Uwe Stöver (FSV Frankfurt), Andre Schubert (Paderborn), Max Eberl (Borussia Mönchengladbach) e Andreas Rettig (Augsburg). Também o número de jogadores alemães nas equipas da Bundesliga tem crescido: dos 50% em 2002-2003 (mínimo histórico) para 57% em 2010-2011. Já a média de idades dos jogadores da Bundesliga em 2001-2002 era superior aos 27 anos. Na época 2010-2011, estava nos 25,77 anos.

Ao nível da selecção, a realidade inverteu-se por completo. As experientes e calculistas selecções de 1998, 2000 ou 2002 deram lugar a uma nova Alemanha, com um futebol atractivo e sustentada pelo talento dos jovens que germinam a um ritmo alucinante. No Mundial’2010, por exemplo, a Mannschaft tinha uma média de idades inferior a 25 anos.À componente desportiva, importa acrescentar a vertente social da iniciativa que contribuiu, de forma inequívoca, para a integração da enorme comunidade emigrante na sociedade alemã. As academias são também residências e escolas, tendo passado por elas, nos primeiros 10 anos, cerca de 20 mil professores. Nas 36 academias treinavam, em 2011, miúdos de mais de 80 nacionalidades diferentes, num total de 6 mil jovens espalhados pelos vários escalões de formação.

O modelo alemão de formação é hoje visto, a nível internacional, como exemplo a seguir e já foi mesmo apontado pela UEFA como o melhor a nível europeu. É verdade que tira benefícios do facto da Alemanha contar com uma base de recrutamento muito grande e da crescente miscigenação da população a viver no país, permitindo também novos tipos de jogador que não se viam na Mannschaft há 15 anos atrás. A isto junta-se a enorme capacidade financeira, vital para o elevado investimento realizado ao nível das infraestruturas. Ao todo, nos primeiros 10 anos do projecto, foram aplicados 520 milhões de euros nas academias. Mas nada disso pode retirar o mérito à iniciativa ‘visionária’ da DFB.

E, se dúvidas restassem, nada melhor que a apreciação de quem está por dentro. A realidade actual «é muito melhor do que a de há 10 anos atrás», referiu Joachim Löw, seleccionador alemão, numa entrevista recente. “Naquele tempo era só preparação e força, mas agora aprendemos a ser mais tecnicistas”. Quanto à competitividade da liga local, esta época não é um bom exemplo. Mas, como diz o ditado, uma andorinha não faz a primavera. Nas últimas seis temporadas, quatro clubes foram campeões: Bayern München (duas vezes), Borussia Dortmund (duas vezes), Stuttgart e Wolfsburg. Steve McClaren, antigo treinador do Wolfsburg, foi esclarecedor: «A beleza da Bundesliga é que 10 equipas podem ser campeãs».

Hoje, a Alemanha poderia fazer mais que um onze capaz de lutar por uma grande competição internacional. Em condições normais, apenas uma selecção pode rivalizar com a Mannschaft no Mundial’2014: a Espanha. Mas, como está fortemente apoiada no sucesso e nos frutos da Masia catalã, sofrerá para substituir Xavi, Iniesta, Busquets ou Piqué. A Alemanha, tudo o indica, ocupará o lugar de melhor selecção do mundo em breve. E conta do seu lado com o avanço de mais de 10 anos, porque foi lesta a identificar o problema e a lançar um plano que, mais cedo ou mais tarde, deverá ser copiado por outros países.

Também a Bundesliga, na minha opinião, caminha a passos largos para a afirmação enquanto melhor liga do mundo. Por fim, mas não menos importante,o Bayern München já se apresenta como equipa de top a nível mundial, tendo o Barcelona (ao seu melhor nível) como único rival à altura. Mas sobre isso falarei numa outra ocasião.

* Este texto foi escrito em Março, quatro meses antes do começo do Mundial 2014, ganho precisamente pela Alemanha retratada pelo autor. Agradecimentos especiais ao projecto «Palavras ao Poste», onde o texto foi originalmente publicado.