Tarde morna de domingo. Dia 18 de fevereiro de 2018. Não é um dia comum em Aracaju, capital sergipana. É dia de clássico. Sergipe x Confiança. De Ser-Con. De Derby Sergipano. Torcedores colorados estão empolgados, o time está bem: “A vitória é certa, o Dragão vem mal das pernas”, certamente pensa o torcedor rubro, exalando confiança, digo, otimismo. Torcedores azulinos esperançosos sonham com a redenção frente ao arquirrival: “Vamos sair dessa!”. A poucos instantes do início da partida, as filas ainda estão quilométricas.

A poucos instantes do jogo, ainda sobram ingressos nas bilheterias
A poucos instantes do jogo, ainda sobram ingressos nas bilheterias
Antonio Barreto, torcedor fanático do Gipão
Antonio Barreto, torcedor fanático do Gipão

Antes do apito inicial, avistamos um torcedor do Gipão, uma das alcunhas carinhosamente dadas ao Sergipe pelos seus torcedores, com chapéu de couro, junto a familiares. Sua ansiedade é visível. Perguntado sobre como descreveria o sentimento naquele instante, não titubeou: “É o resgate da torcida, né? (sic)”, disse o professor Luis Antonio Barreto, 51 anos. Logo vieram as lágrimas: “Eu me emociono, pois sou filho de rubro, meus filhos são rubros e a gente quer a felicidade do clube. A gente tá passando por uma crise, mas vamos ultrapassá-la. Começaremos hoje, enterrando o Confiança e bem a sete palmos do chão (sic)”, decretou animado.

O Estádio Lourival Baptista, mais conhecido como Batistão, não tem lotação máxima, mas não está vazio. Quase nove mil pessoas se fazem presentes em mais uma edição do maior clássico do estado. O mando de campo é do Sergipe. A pintura do recinto é uma prévia do que está por vir: metade em vermelho, metade em azul. O jogo começa brigado. Não poderia ser diferente.

De um lado, está o Mais Querido, como é chamado pelos seus aficionados, o Derrubador de Campeões, como se autoproclamou após adquirir tal fama impondo derrotas a vitoriosos times da época, como o Bangu, campeão carioca em 1966 e do Torneio dos Campeões no ano seguinte. O Vermelhinho se orgulha de ser o maior campeão do estado, tendo sido hexacampeão (obteve seis títulos estaduais consecutivos) por duas vezes: o primeiro, de 1924 a 1933 (não houve campeonato em 1925, 1926, 1930 e 1931), e o segundo, de 1991 a 1996.

Do outro, está o Dragão do Bairro Industrial. O time da Trovão (nome de uma de suas torcidas organizadas). Em 1955, Joaquim Ribeiro, patrono do clube, anunciou: "Se é para o bem de todos e felicidade maior do Confiança, o Confiança fica e a fábrica sai, porque o Confiança não pertence mais à fábrica, o Confiança agora é do povo", após passeata da inconformada torcida em protesto ao anúncio do fechamento do clube. E assim foi feito. O Gigante Operário é símbolo da sua prole. O Azulino se gaba de ter a melhor a campanha do estado em um certame nacional, em 1977, quando chegou à segunda fase, assim como na Copa do Brasil, em 2002, quando foi às oitavas-de-final, sendo eliminado pelo Brasiliense, que viria a ser o vice-campeão do torneio.

Voltando ao palco do embate, é possível notar um Sergipe acelerado. Genivaldo, goleiro do Confiança, se mostra impenetrável. Uma, duas tentativas e lá está ele para impedir que o grito preso na garganta dos colorados seja ecoado. Perto do fim da primeira etapa, o Proletário vem a responder com Gabriel, que falha em acender a chama do Dragão. Mais uma intervenção de Genivaldo e é soado o apito.

Durante o intervalo, é possível notar diversas camisas de times alheios àquela partida. Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco e por aí vai. Nos aproximamos de um torcedor cruzmaltino e perguntamos o porquê de estar trajado com a camisa do clube em um dia de duelo sergipano. “É porque o Vasco já vem de infância, né? Aquela concorrência com o Flamengo, mas na verdade o coração é Sergipão!”, exclamou.

Com o reinício do duelo, o Confiança dá indícios de que faz jus ao seu nome. A equipe cria algumas chances, passa a gostar do jogo e parece dar equilíbrio à partida, pressionando o adversário. Ilusão. O Sergipe, que já parecia estar próximo de abrir o placar na primeira etapa, resolve desencantar. Marinho Donizete lança Diogo na lateral esquerda do ataque. O garoto cruza na medida para Nino Guerreiro, de cabeça, fazer a alegria da torcida rubra.

Enquanto a torcida colorada ainda comemora a vantagem no marcador, em meio a toda a atmosfera sertaneja, o clima regional, o êxtase local, nordestino, sergipano, um anúncio estranho ao ambiente é feito nos alto-falantes do estádio: “Secretaria de Esporte e Lazer informa: Boavista, zero. Flamengo, um.” Gritos de comemoração ecoam uníssonos no Batistão. “Se o gol foi no Rio de Janeiro, o que tem a ver o torcedor sergipano?”, você deve estar se perguntando.

Como se não bastasse, torcedores do Mais Querido começam a discutir. Pela situação do jogo? Pelo quase empate do Confiança? Longe disso. Ao ver a comemoração do gol do Flamengo por parte de um adepto trajado com a camisa do clube carioca, um torcedor do Vasco inicia uma discussão em relação à rivalidade entre os dois times, deixando de lado o jogo no qual estavam presentes.

Com a abertura do placar, o Confiança se mostra abalado. O Sergipe retoma o controle do jogo e das ações. Mais um gol do Flamengo no Rio de Janeiro, anuncia o locutor do Batistão, para o delírio de Proletários e Rubros, indistintamente. O árbitro decreta fim de jogo em Aracaju. Colorados comemoram a vitória por 1 a 0 e a recuperação da liderança no campeonato. Azulinos vão para casa com mais um resultado decepcionante, o oitavo lugar e uma ameaça de rebaixamento cada vez mais forte. O Rubro-Negro Carioca também vence, mas quem perde é o futebol sergipano.

Sobram espaços nas arquibancadas do Batistão
Sobram espaços nas arquibancadas do Batistão

Como entender esse fenômeno? Como explicar esse jeito de torcer do sergipano? Clubes, gestão, mídia, representatividade e, principalmente, a torcida. Como todos esses fatores se chocaram para que situações como essa se tornassem comuns nos estádios do nordeste brasileiro? Os possíveis esclarecimentos para essa falta de pertencimento podem vir desde o início da consolidação do futebol como um esporte nacionalmente amado e aclamado. Nesse percurso, o futebol se transformou, a tecnologia avançou, a informação se tornou instantânea e não seria diferente com um dos protagonistas do espetáculo - o torcedor. O jeito de torcer mudou.

Bola que rola, rádio que toca

“Antigamente, antes da internet e toda a globalização, nós consumíamos informação pelas emissoras do Sul, através do rádio, sendo as mais potentes as do RJ. Então o torcedor começava a se apegar a ouvir às rádios cariocas, achando que aquele era o melhor futebol do mundo” (Antonio Barbosa, radialista)

Esse jeito 'misto' de torcer não é de agora. Não foram apenas os fatores atuais que contribuíram para isso. Desde a consolidação do futebol como paixão nacional e a disseminação do seu papel dentro da sociedade, através das mídias e meios de comunicação, que sofremos essa influência sulista, 'determinando' para quem e como torcer.

Na década de 1930, o futebol se estabeleceu. Dois fatos se demonstrariam de grande importância para a época. O primeiro é creditado aos irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues, que são dois ícones do jornalismo esportivo (e dramaturgia) até os dias de hoje. Torcedores do C. R. Flamengo e Fluminense F.C., respectivamente, e ambos do Rio, criaram o primeiro jornal exclusivamente sobre esportes do Brasil, ajudando a divulgar o futebol no estado e por todo o país. A forma dramática e apaixonada da escrita utilizada pelos irmãos popularizou o futebol no território nacional, ajudou no crescimento das torcidas das equipes cariocas Brasil afora e aumentou a paixão do brasileiro pelo esporte, criando alcunhas, ídolos e os famosos “clássicos”.

O segundo fato foi a primeira transmissão radiofônica do futebol, datada em 19 de julho de 1931, tendo como pioneiro (e narrador) o paulista Nicolau Tuma, pela Rádio Sociedade Educadora Paulista. Contextualizando, naquela época, a transmissão era feita das arquibancadas e contava apenas com o narrador, tentando da melhor forma possível passar o que seus olhos viam, como, por exemplo, as características dos atletas (já que as camisas não eram numeradas) e os lances das partidas (estes, desde sempre, de uma forma exagerada e empolgada).

A transmissão de futebol no rádio, até então novidade, ganhou força por proporcionar o sentimento de jogo a quem não estava no estádio e levar isso para toda região, como também enlouqueceu os simpatizantes do esporte com as transmissões ao vivo e in loco, tornando-o companheiro de todo torcedor. O sucesso foi grande, novas funções foram surgindo (como as de comentarista e repórteres de campo), chamando atenção de anunciantes e dos clubes de futebol (que chegaram a proibir a entrada de radialistas nos estádios, alegando a perda de público).

Em 1932, a publicidade é permitida e regulamentada na legislação; em 1938, foi feita a primeira transmissão do futebol em rede nacional, com a Copa do Mundo da França, com narração de Leonardo Gagliano, tendo alto-falantes instalados em praças de vários municípios. A partir dali, a paixão pelo esporte se disseminou de vez. No ano de 1940, Getúlio Vargas estatizou a Rádio Nacional do Rio de Janeiro (que foi a primeira a ter alcance em quase todo o território brasileiro), utilizando as transmissões radiofônicas como propaganda política para divulgar o Estado Novo, incluindo esportes na sua programação, que era retransmitida para todo o país, especialmente o futebol.

Antonio Barbosa, um dos maiores do rádio sergipano
Antonio Barbosa, um dos maiores do rádio sergipano

“Antigamente, antes da internet e toda a globalização, nós consumíamos informação pelas emissoras do Sul, através do rádio, sendo as mais potentes as do Rio de Janeiro. Então o torcedor começava a se apegar a ouvir às rádios cariocas, achando que aquele era o melhor futebol do mundo. Não tínhamos televisão para analisar. Nos baseávamos no que o narrador dizia e, em função disso, tínhamos certeza de que futebol de verdade acontecia lá, em detrimento do nosso, comparando e achando o daqui medíocre. Esse também foi um ponto que marcou para que o torcedor sergipano se dedicasse mais a torcer para os clubes de fora”, aponta Antônio Barbosa, conceituado jornalista e narrador sergipano.

No alto dos seus 71 anos e muitos cabelos brancos, Barbosa presenciou e cobriu quase seis décadas de futebol em Sergipe, vivenciando anos áureos, como na década de 70, chegando ao ostracismo, do início do século 21 para cá. Saudosista, o narrador crê que esta situação tem tudo para mudar, pois o orgulho de torcer para o time local nunca foi tão grande, embora esteja aquém do que é sentido para com clubes de fora do estado.

Seja Barbosa, outros jornalistas, torcedores e entusiastas do futebol local, todos afirmam a mesma coisa. Esse fato ajudou no crescimento das torcidas dos times do eixo Rio-São Paulo em Sergipe, pois seus jogos eram transmitidos para cá, tornando os times populares, criando simpatizantes e novos torcedores. Isso, obviamente, influenciou no jeito ambivalente de torcer, trazendo drásticas consequências para o desenvolvimento do futebol de Sergipe. Seja pelo aspecto econômico ou emocional, os clubes sergipanos saíram perdendo.

O ex-jogador Luiz Carlos Bossa Nova teve carreira consagrada, tendo jogado em clubes como Confiança, Sergipe, Atlético-MG e Santos, sendo campeão por onde passou. Já foi técnico e hoje é Coordenador de Esporte de Inclusão Social na Secretaria Municipal da Juventude e do Esporte (Sejesp), passando por quase todas as instâncias dentro do futebol.

Luiz Carlos Bossa Nova, um dos maiores craques que o futebol sergipano já teve
Luiz Carlos Bossa Nova, um dos maiores craques que o futebol sergipano já teve

Para ele, durante o período no qual jogava, os torcedores eram mais fiéis aos clubes locais. “Na época que eu jogava futebol, a identidade do torcedor com o clube era diferente dos dias de hoje. Joguei nas décadas de 70 e 80, não tinha televisão, não era tão acessível quanto hoje em dia. Atualmente, os jovens conseguem ver clube de qualquer parte do mundo jogar, havendo um certo “desapaixono” pelo futebol sergipano”, lamenta Bossa Nova.

Dessa forma, seria apenas a mídia a ‘culpada’ pela inibição do potencial crescimento do futebol sergipano? Quais os outros fatores que poderiam influenciar nesse afastamento dos adeptos aos clubes da sua região? Qual a diferença dos torcedores atuais para os de anos atrás, da época em que os campos lotavam e o esporte bretão estava no seu auge aqui em Sergipe?

Adel Ribeiro, crítico dos torcedores considerados
Adel Ribeiro, crítico dos torcedores considerados "mistos"

Adel Ribeiro, presidente da Associação dos Cronistas Desportivos de Sergipe (ACDS), trabalha no rádio há quase 30 anos, sendo um crítico ferrenho dos chamados torcedores mistos e, para ele, é um absurdo situações como a que aconteceu recentemente em Confiança x Flamengo, no Batistão, pela Copa do Brasil, onde muitos torcedores do Dragão foram vestidos com a camisa do Rubro-Negro Carioca e ficaram na sua torcida. “O rádio esportivo tem uma grande função de propagar. Sendo assim, se pararmos para analisar, o sergipano, culturalmente, é muito alienado às coisas de fora, em todos os aspectos, e não seria diferente no futebol”, critica Adel.

São paradoxos como esse, criados ao longo do tempo, que os conhecedores e amantes do futebol daqui tentam nos contar. Histórias, pessoas, teorias, problemas, soluções e, principalmente, o torcedor. Para tudo e todos foi dada voz para tentar explicar ou, pelo menos, discutir em relação a essa sensação de falta de pertencimento dos sergipanos apaixonados pelo esporte mais popular do mundo.

Torcedor raiz x violência

“O Sergipe para mim é o orgulho do meu estado, torço muito por ele! Não troco o Colorado por time algum!” (Nilza dos Santos, 60 anos, sendo 40 de Sergipe)

Nilza dos Santos, torcedora fanática do Sergipe
Nilza dos Santos, torcedora fanática do Sergipe

Uma das razões para o afastamento do torcedor dos estádios certamente é a violência. Atualmente, um pai tem de pensar muitas vezes antes de levar a sua família a uma partida. “Hoje é totalmente diferente. Antes, víamos o jogo todos juntos, sem essa separação e brigas que acontecem agora. Antes era melhor!”, lamenta Joaldo dos Santos, 72 anos, antes de sentenciar: “O futebol daqui está muito fraco, eu prefiro acompanhar o Vasco!”. Valdemir França, 62 anos, diz que tudo isso é culpa dos dirigentes que não se organizam e dos empresários que não ajudam.

Frequentemente, o dilema da violência nas arenas está associado à figura das torcidas organizadas, instituições muitas vezes cooptadas por facções criminosas que se aproveitam do espetáculo para a prática de atos de selvageria. “Antes não existia torcida organizada. Com a invenção destas torcidas, o negócio ficou muito violento”, atesta Valdemir.

Violência prejudica lotação dos estádios em Sergipe
Confiança, que está na Série C, não faz bom início de temporada

Embora considerados pequenos, em Sergipe existem muitos estádios de futebol. Atualmente, os dez clubes que estão na primeira divisão do Campeonato Sergipano atuam em nove estádios diferentes, em nove cidades espalhadas por todo o estado. Embora seja raro estarem lotados, as situações vão desde o bem cuidado e reformado Batistão, que serviu de subsede na Copa do Mundo de 2014, passando pelo Etelvino Mendonça, que tem recebido públicos razoáveis, devido aos bons resultados do time da cidade, o Itabaiana, e chegando a situação de interditado, como o Wellington Elias, em Socorro.

Nilton Lima, 71 anos, torcedor do Botafogo devidamente uniformizado, diz que antigamente a turma era mais vibrante, gritava mais. “Não tinha esse problema de torcida organizada. Era diferente, acaba afastando criança, mulher, a família do estádio.” Seu Carlos Alberto, 54 anos, trajado com a camisa do Vasco, endossa o discurso e lembra de bons tempos do esporte no estado: “Você tem que ir para campo para torcer! Não para se enfrentar, como se estivesse em uma arena. É paixão, coisa que já vem de pai para filho, é um sentimento único. Vocês são novos ainda e não viram um bom futebol em nosso estado, como era antigamente.”

Violência prejudica lotação dos estádios em Sergipe
Violência prejudica lotação dos estádios em Sergipe

O radialista Antonio Barbosa crê que os clubes também têm culpa neste processo, financiando e dando privilégios para as organizadas e assim possibilitando a entrada de indivíduos com o único interesse de expandir seu sentimento de rivalidade entre as torcidas: “Hoje, chegou ao ponto de a polícia ter que proteger uma torcida na entrada ao estádio. Então, o perfil do torcedor de futebol, que ia para o estádio para se divertir, levando sua família e amigos, aceitando a presença de torcedores do outro time com tranquilidade, foi sucumbindo cada vez mais.”

Falta de investimento afasta torcedor

“É inadmissível você deixar de vestir a camisa do seu clube do estado para vestir a camisa de fora. Isso é falta de identidade.” (Adel Ribeiro, cronista e radialista)

Torcedores com camisas de clubes cariocas em pleno Ser-Con
Torcedores com camisas de clubes cariocas em pleno Ser-Con

Confiança: Série C. Itabaiana: Série D. Sergipe: Série D. Esta é a situação atual dos principais clubes do estado em competições nacionais. Entre a necessidade de profissionalização e transparência nas gestões, falta de investimento por parte do empresariado local e o distanciamento do torcedor das arquibancadas, o futebol sergipano respira, ainda que por aparelhos.

Na trama do futebol, o sergipano estaria quase fora do mapa, enquanto vizinhos barulhentos como Alagoas, com CRB e CSA na Segunda Divisão e Bahia (desproporcional comparar), com Bahia e Vitória na Primeira Divisão, se digladiam com os adversários mais tradicionais do cenário nacional.

Todos os entrevistados desta reportagem alegaram que um dos grandes problemas do futebol sergipano é a falta de investimento, seja do empresariado ou do próprio clube e, infelizmente, quem mais sofre com isso tudo é o torcedor, que não vê qualidade no seu time, ficando desacreditado e se afastando do estádio.

“Hoje, nós fomentamos o esporte em toda a Grande Aracaju e passam pela gente cerca de 7000 atletas, de 6 a 16 anos, em várias competições que organizamos. O que eu entendo é que hoje vivemos um paradoxo: nós temos uma das maiores matérias-primas do país, mas temos o pior futebol”, é o que nos conta o Coordenador de Esporte de Inclusão Social, Luiz Carlos Bossa Nova, alegando que os clubes de Sergipe investem pouco na base, deixando os grandes talentos serem levados por times de fora e que até então “nunca um dirigente de uma equipe daqui foi olhar uma final, porque não têm interesse e não por falta de convite”.

Torcidas segregadas para evitar conflitos
Torcidas segregadas para evitar conflitos

Com isso, a identificação do torcedor para com o clube diminui, gerando um desconforto, pois ele não se sente representado pelos jogadores, sendo a maioria de fora do estado. Ainda mais para o adepto mais antigo, que estava acostumado a ver craques sergipanos desfilarem nos gramados, como Joãozinho da Mangueira e o próprio Luiz Carlos Bossa Nova, que por si sós já levavam os torcedores para o estádio.

Até mesmo a fase e tradição de clubes do interior, como o Itabaiana, que já foi pentacampeão sergipano na década de 1970 e que tem chegado nas finais recentes do campeonato, além de disputar a Série D do Campeonato Brasileiro, não tem atraído o torcedor ao estádio. Isso se deve ao fato de que, mesmo morando longe de Aracaju, os habitantes dessas cidades acabam escolhendo um dos times da capital para torcer, exceto o clube itabaianense, que apresenta média de público parecida com as de Sergipe e Confiança. “Eu fui técnico de times do interior do estado e percebi que a maioria dos torcedores que torcem para clubes das cidades também torcem para algum da capital. No entanto, quando o time da cidade está com um bom time, jogando bem, batendo de frente com os maiores, os habitantes fecham com o clube. Então, isso tem muito a ver com a qualidade da equipe que é formada naquele município”, afirma Bossa Nova.

Muitas vezes, o empresariado sergipano deixa de aplicar seu dinheiro no futebol local por falta de planejamento e transparência dos clubes. Isso acaba refletindo também nos torcedores, que acabam não aderindo aos planos de sócio pelo fato de não verem resultado, fragilizando o processo e demonstrando uma falta de profissionalização de gestão por parte das equipes.

Mas nem tudo é lamúria. Ações como o Dragão nos Bairros, desenvolvido pelo Confiança, que consiste em escolinhas gratuitas em comunidades específicas em Aracaju e no interior, criam uma luz no fim do túnel. O projeto tem como objetivo trazer talentos para a base do clube e firmar o time naquele bairro, criando identificação por parte da comunidade local, além de ser uma oportunidade para a criação de novos torcedores, enraizando suas cores pelas cidades de Sergipe. Portanto, é possível conseguir novos adeptos apaixonados com esses tipos de iniciativa, mas falta engajamento dos clubes sergipanos.

Iniciativas voluntárias

“O sócio torcedor é o caminho para que o clube tenha um poder aquisitivo forte, para conseguir se organizar e se profissionalizar.” (Jorge Garcez, acerca das alternativas para o fortalecimento do futebol local)

Como falamos anteriormente, essa possível mudança de cenário do meio futebolístico sergipano também passa pelo torcedor. Ele tem o poder de ajudar no crescimento e reestruturação do seu clube e, muitas vezes, não sabe disso.

Ações individuais ou coletivas em prol do clube que se torce, sem esperar nada em troca, só pensando no engrandecimento do time, às vezes são vistas no futebol brasileiro. Como a construção do estádio do Vasco da Gama-RJ, o São Januário, em 1927, com ajuda de seus adeptos. O clube angariou os recursos necessários sem ajuda do poder público. Mais recentemente, torcedores do Remo-PA fizeram uma campanha para reformar o Estádio Baenão, fechado em 2014.

Edson Nascimento, 58 anos, mais conhecido como Dida, é torcedor do Sergipe desde os oito de idade, quando viu o Derby em Capela-SE, sua terra natal. De forma voluntária, estreitou sua relação com a entidade em 2004, dando início ao que seria o belo Memorial do Mais Querido. “A partir daí, eu não ia somente aos jogos no Batistão. Certa vez precisei saber a história do hino do Sergipe. Queria saber quem cantava, como surgiu, então fui ao João Hora (estádio do Colorado) e lá ninguém sabia nada!”, conta Dida, aos risos.

Dida, o guardião do memorial Colorado
Dida, o guardião do Memorial Colorado

Após pedir ao então presidente Antônio Soares da Mota, o Motinha (falecido em 2015), que lhe fosse permitido o pontapé inicial, começou um trabalho dotado de nostalgia, saudosismo e amor. “Ele concedeu uma sala pequenininha, então comecei a juntar os troféus, a organizar, mas era um cubículo mesmo. Ganhamos uma sala maior e isso trabalhando claro que voluntariamente”, explica o orgulhoso guardião do Memorial. Atualmente, ele reúne fatos históricos sobre seu clube de coração, com CDs e mais CDs com documentos, fotos, jornais e feitos sobre o Sergipe (e, consequentemente, do futebol sergipano), desde sua criação, fazendo com que as histórias e glórias do Gipão possam ser conhecidas pelas gerações mais novas.

José Jorge Garcez, 53 anos, professor e radialista, é um aficionado torcedor do Confiança. Desde sempre presente nos estádios, participa de projetos ligados ao clube, passando sua imensurável paixão para os seus filhos, que hoje tocam a inovadora TV Dragão. “Eu não perdia um dia da Hora do Dragão, que passava na Rádio Difusora, em 1986. Entre idas e vindas, o programa voltou em 2008 e o responsável me convidou para ficar à frente do projeto, que continua até hoje, na Rádio Aperipê”, explica Jorge.

Pai e filho: dedicação ao Dragão nas redes
Pai e filho: dedicação ao Dragão nas redes

Simultaneamente ao programa na rádio, Jorge tinha uma ideia e sonho de criar uma TV digitalizada para seu time, que só no início de 2016 se concretizou. No entanto, só no final daquele ano que, com a ajuda de seu filho Luis Quaranta, 26 anos, o projeto embalou de vez. “De forma totalmente voluntária, amigos se juntaram a mim e começamos a criar conteúdo para o canal no YouTube, algo para ajudar o clube, que foi ganhando forma e qualidade com o tempo”, nos conta o orgulhoso Luis.

E o trabalho dos torcedores não passou despercebido. Com o canal já conhecido na torcida, em 2017, o Confiança oficializou a TV Dragão como a TV oficial do Azulino, dando apoio logístico e financeiro para que a equipe crie conteúdo de alta qualidade, transmita jogos e divulgue o nome do clube mundo afora. Atualmente, os números do canal são superiores aos de alguns clubes da Série A do Campeonato Brasileiro. “Hoje, ela é uma realidade e um produto que, se o nosso futebol é considerado pequeno, eu acho que a nossa TV Dragão é grandiosa, porque ela não é minha, não é de meu filho, não é de ninguém, é da nossa instituição, é da nossa torcida e nunca deixará de existir”, afirma, emocionado, o azulino Jorge.

O Memorial do Sergipe e a TV Dragão são projetos que surgiram de ideias e iniciativa de torcedores, de ações voluntárias dos mesmos, feitos com o mais puro e sincero amor. Representam o quanto eles querem que seus clubes cresçam, demonstrando que a importância da torcida vai muito além da presença nos estádios, podendo perpetuar e mostrar para o mundo a história dos seus times de futebol.

Atração de novos torcedores é gol de placa

“O estádio é onde começa a se formar esse torcedor.” (Adel Ribeiro, sobre soluções para a atual situação)

Para muitos, a ida ao estádio é a demonstração primária, mas, ao mesmo tempo, máxima de amor ao seu clube. Nada como gritar gol, vendo o lance ao vivo e abraçar seu amigo torcedor do lado, em um ato único que une nações e desconhecidos.

Com isso, desde jovem, o brasileiro se acostumou a ir ao estádio, muitas vezes acompanhado de uma criança, tentando transmitir sua paixão, mesmo que não seja pelo seu time de coração, mas pelo esporte e espetáculo ali apresentado. Não seria diferente em Sergipe. Entretanto, levando em consideração os fatores citados acima, tem sido uma rotina cada vez mais ausente na semana do torcedor. Até porque ele tem no conforto da sua casa, na televisão, jogos de fora do estado e da Europa, longe de toda a violência que atormenta o meio futebolístico.

“Acho que os clubes deveriam incentivar o torcedor a se associar, sendo o ponto primordial para atrair novos torcedores. Em função disso, o adepto estaria mais presente no clube, crescendo sua paixão, marcando presença nos estádios de futebol”, opina Antonio Barbosa, abordando um ponto cada vez mais essencial no planejamento do clube, não só para as finanças, como também para fidelizar o torcedor e facilitar sua ida ao templo sagrado do seu time.

Devido ao amadorismo das gestões dos clubes, todo o potencial de crescimento que as equipes têm é desperdiçado a cada ano. A falta de planejamento faz com que uma mesma cena seja repetida no Derby Sergipano: a de um Batistão, que já viu desfiles de inúmeros craques e de superlotações, quase vazio.

Por ser um clássico, a rivalidade quase que obrigaria o torcedor a comparecer e encher o estádio, mas justamente essa falta de pertencimento e identificação, além da qualidade questionável do espetáculo, fazem com que os adeptos prefiram ficar no conforto do seu lar, vendo um jogo aleatório dos campeonatos sulistas do país.

“Acho muito importante a pessoa trazer o filho, sobrinhos novos para o estádio. Incentiva a torcer e vibrar por algum time do estado, fortalecendo e aumentando o número de adeptos, na formação de torcedores”, é a mensagem que Val Souza, 31 anos, acompanhado do seu pequeno sobrinho Tiago, quis deixar para toda a nação sergipana que é apaixonada por futebol, para que cenas como a da foto abaixo possam se repetir o mais constante e frequentemente possível.

Derby Sergipano, Brasileiro Série A, 1977
Derby Sergipano, Brasileiro Série A, 1977

(Legenda: Derby Sergipano, Brasileiro Série A, 1977 Fonte: http://memoriasdofutebol-eudorobson.blogspot.com.br/2013/01/quando-em-sergipe-o-futebol-era-de.html)