3 de fevereiro de 1914. 19 horas. Rua da Mangueira, nº 2. Boa Vista. Naquele momento e naquele local conhecido como Pátio de Santa Cruz, 11 adolescentes apaixonados pelo ainda elitizado foot-ball decidiram criar um novo clube voltado para a prática do esporte bretão. Na contramão das agremiações existentes à época, o Santa Cruz Foot-Ball Club, ainda vestindo preto e branco, era alvinegro também nos tons de pele: negros como Teófilo Batista de Carvalho, conhecido como Lacraia, defendiam as cores do clube popular.

E foi justamente esse apelo popular que, quase oitenta anos depois, atraiu um certo garoto morador de um bairro popular de Olinda, cidade vizinha à capital pernambucana. Ele não viu a inclusão do vermelho às cores do clube, tornando o uniforme alusivo à Cobra Coral. Ele não viu o primeiro tricampeonato estadual na década de 1930. Nem viu o surgimento do campo entre as ruas Beberibe e das Moças, que mais tarde viria a se tornar o Colosso do Arruda, maior estádio do Recife.

Esse menino de sete anos também não viu o supercampeonato em 1957, nem viu o penta de 1969 a 1973, nem viu Ramon, outro apaixonado pelas três cores, ser artilheiro do Campeonato Brasileiro no ano do penta, nem Armando Marques validando o gol irregular do cruzeirense Palhinha na semifinal de 1975 que acabou com o sonho do título nacional. Não viu o bisupercampeonato em 1976, nem mesmo o trisupercampeonato em 1983, decisão mais emocionante da história do clube segundo seus parentes mais velhos.

Mas em 1993, depois de ter pisado pela primeira vez no José do Rêgo Maciel num clássico contra o rival Sport que terminou em 0 a 0, lá estava o garoto mais uma vez com o avô. Era outra final de Campeonato Pernambucano, contra o Náutico. Ele ainda viu o artilheiro Washington ser expulso, mas o medo dos rojões, à época segurados e estourados pelos próprios torcedores na arquibancada, fez com que ele saísse do estádio no primeiro tempo. Atitude incentivada pelo gol do Timbu, que jogava pelo empate.

Já em casa, no bairro de Ouro Preto, ele ouve pelo rádio o inacreditável: Fernando aos 38 e Célio aos 44 do segundo tempo viraram o jogo para o Tricolor. Eles queriam voltar ao Arruda, mas não havia mais tempo. Restaram os abraços, o choro, a comemoração, e a certeza naquele instante de que surgia ali mais um torcedor apaixonado por aquelas três cores.

Ainda na companhia do avô e agora do irmão mais novo, ele comemora no JRM o título de 1995 e acompanha toda a incrível trajetória do limitado time de 1999 na série B: de quase rebaixado - ele estava lá na dolorosa goleada sofrida por 5 a 1 contra o América/MG - a classificado para o mata-mata por uma incrível combinação de resultados. Depois veio a alegria ao eliminar o poderoso líder São Caetano e o acesso, comemorado contra o Bahia e ratificado no empate contra o Goiás.

Já adolescente, ele lamenta a lanterna na João Havelange em 2000, o rebaixamento em 2001, e os inúmeros vice-campeonatos estaduais, em especial o de 2004, onde o Tricolor era favorito e foi goleado com direito a tabelinha com a bandeira do escanteio. Em 2005 veio a redenção da década: mais um estadual e mais um acesso à série A, com a frustração pelo ocorrido a pouco mais de um quilômetro dali, a famosa Batalha dos Aflitos que lhes tirou o inédito título nacional.

A partir daí veio a queda: três rebaixamentos seguidos levaram o Santa Cruz aos porões do futebol nacional. Aquele torcedor, já com seus vinte e poucos anos, viu o Tricolor empatar em 1 a 1 com o Campinense e amargar a lanterna do Grupo 19 da Série C de 2008, sendo consequentemente rebaixado à recém-criada Série D. Ele teve que deixar Pernambuco mas, de longe, pegando um avião sempre que podia, sofreu com o calvário de três anos na última divisão do futebol nacional e com o medo do seu clube nunca mais se recuperar.

Nova década, nova esperança. Em 2011 veio a quebra do jejum de títulos com a conquista de mais um estadual, impedindo o hexacampeonato do adversário daquela final, o rival Sport. No mesmo ano, ao empatar sem gols com o Treze, uma certeza: Série D nunca mais. Ele não estava no Arruda, mas estava aliviado como os quase 60 mil presentes ao Mundão. No ano seguinte mergulhou na piscina do clube para comemorar o bicampeonato conquistado em plena Ilha do Retiro.

Em 2013 veio o tri, mais uma vez na Ilha do Retiro. Aquele torcedor não estava no estádio, mas estava feliz por acompanhar a decisão ao lado de mais um presente que o Santa Cruz lhe deu: sua digníssima namorada e atual esposa, também frequentadora do José do Rêgo Maciel. E ambos choraram de felicidade e alívio ao ver o mítico Flávio Caça-Rato cabecear para o fundo da rede do goleiro do Betim, decretando o adeus à Série C do Campeonato Brasileiro.

Depois do atípico e nada memorável ano do centenário, 2015 reservava fortes emoções. Mais um título estadual, dessa vez em cima do Salgueiro, e outra campanha espetacular na Série B. Aquele torcedor, já barbudo, calvo e quase trintão, agora morava a poucos metros da sua segunda casa, e estava presente em todos os jogos do Tricolor. Ele viu, como em 1999, seu time do coração sair da zona do rebaixamento ao vice-campeonato, atropelando adversários tradicionais como Botafogo e Bahia e retornando à elite do futebol nacional.

E hoje, no dia em que o clube completa 102 anos, ele escreve essas memórias, tendo como pano de fundo a janela do seu quarto e a visão desse que já foi palco de tantas alegrias e decepções nesses 22 anos de muitas histórias vividas. Apesar de ser quase jornalista e ter a pretensão de trabalhar no meio esportivo, o amor que ele nutre pelo futebol e pelo Santa Cruz jamais será esquecido.

Parabéns e muito obrigado por tudo, Santa Cruz Futebol Clube!