Uma das histórias mais interessantes e emocionantes do futebol mineiro e brasileiro completa hoje 40 anos. Neste dia 21 de dezembro, porém, em 1976, Cruzeiro e Bayern de Munique-ALE decidiam, no Mineirão, o Mundial Interclubes daquele ano. O resultado final consagrou como campeões a equipe alemã com o placar terminando em 0 a 0. No primeiro embate, ocorrido em 23 de novembro, os alemães venceram por 2 a 0.

Naquele período, o Mundial Interclubes era decidido em duas partidas. Em outros tempos, foi finalizada em três confrontos. Mas, para o embate entre Cruzeiro e Bayern-ALE foram necessárias - e previstas pelo regulamento da competição - apenas dois jogos. 

ue Morais e Nelinho tentam jogar, mas a neve e o Bayern não deixaram. Foto: Revista Placar

No entanto, muito mais do que o regulamento, que depois passou a consagrar o campeão em apenas um jogo decidido em Tóquio, Japão, e atualmente disputado em modo torneio, com campeões dos seis continentes do mundo, o Mundial Interclubes de 1976 guarda muitas histórias tanto para o time vencedor, o Bayern, quanto para o vice-campeão, Cruzeiro. 

Voltando no tempo: decisões da Libertadores e Champions League

O Cruzeiro se credenciou a disputa de seu primeiro Mundial Interclubes após vencer o River Plate-ARG por 3 a 2, em Santiago do Chile, na terceira partida da final da Copa Libertadores da América. O gol salvador de Joãozinho até hoje é comemorado pelos torcedores, não apenas pelo título conquistado, mas por conta da irresponsabilidade do então camisa 10 celeste.

Elenco celeste campeão da Libertadores de 1976 e que estava pronto para o Mundial. Foto: Almanaque do Cruzeiro

O Bayern de Munique também conseguiu disputar o primeiro Mundial Interclubes. Anteriormente, o Gigante da Baviera havia se classificado para as decisões de 1974 e 1975, sem jogar as partidas. Para se credenciar ao embate em 1976, o time alemão derrotou o Saint Etienne-FRA por 1 a 0, em partida disputada na cidade de Glasgow, na Escócia. 

Jogadores do Bayern comemoram o título da Champions League contra o Saint Etienne. Foto: Divulgação

Algum torcedor mineiro conhecia o Bayern de Munique?

Naquela época, o futebol internacional não era tão popular no Brasil como nos dias atuais. Não existiam os canais a cabo e internet. Desta forma, responder esta pergunta não resultaria em uma resposta concreta. No entanto, se pensarmos que o Bayern de Munique foi à base da seleção da Alemanha campeã do mundo de 1974, alguns mais fanáticos provavelmente saberia que o Gigante da Baviera não era uma equipe qualquer. 

Em 1976, Luiz Carlos Alves era repórter da Rádio Inconfidência. Posteriormente, se transferiria à TV Itacolomi e a Rádio Guarani. Logo após sua chegada as emissoras do grupo Diários Associados viajou até Munique e fez uma grande reportagem sobre o Bayern-ALE. O jornalista e publicitário, em depoimento à VAVEL Brasil contou sua saga até a cidade alemã. 

"O Cruzeiro foi campeão da Libertadores, e num determinado momento, enquanto estava na sede campestre da Associação Mineira de Cronistas Esportivos conversando com Fernando Sasso, narrador esportivo da TV Itacolomi, achei estranho os veículos de comunicação dos Diários Associados (Estado de Minas, Diário da Tarde, Rádio Guarani e Rádio Mineira) não terem se manifestado sobre a decisão que viria ocorrer meses depois, e que era uma excelente oportunidade de mostrar ao povo mineiro o Bayern de Munique, que dois anos antes havia sido base da seleção alemã campeã do mundo de 1974.

O Sasso [Fernando], com muita ética e dignidade, levou a minha ideia ao diretor da TV Itacolomi, José de Oliveira Vaz. O Vaz me convidou para que eu me transferisse para a televisão e fosse viajar até Munique, quando eu achava que outro profissional da emissora iria fazer este trabalho. Fiquei muito feliz e após este convite deixei a Rádio Inconfidência e fui para o grupo Diários Associados. 

Dois dias depois, ainda sem ter a carteira assinada pela emissora, embarquei até a Alemanha. Na cidade de Frankfurt, encontrei Neumar de Kanel, que havia sido interprete dos profissionais dos Diários Associados na Copa do Mundo de 1974. Hospedei-me na casa dela e de seu marido, Vladimir de Kanel. De lá, ela articulou minha visita ao Bayern de Munique, onde nos encaminhamos no dia seguinte pela manhã”, contou.

Bayern de Munique posava como campeão antes de começar partida no Mineirão (Foto: Divulgação)

Luiz Carlos Alves detalhou como registrou todo o trabalho realizado e os personagens com os quais esteve enquanto visita o Bayern de Munique.

Contratei uma equipe em Munique para registrar todo trabalho em cinema. Logo na chegada ao Bayern de Munique, percorremos as magníficas instalações do clube alemão, os campos, sala de troféus, e a assessoria de imprensa que me deu de presente um livro enorme que conta a história do time, pena que não o tenha mais. Posteriormente, nos proporcionaram o encontro com os personagens da equipe. Entrevistei Beckenbauer, Gerd Müller, Overath, Sepp Maier e o treinador Dettmar Cramer. 

Em seguida, fomos até um estúdio que transformou todo aquele material gravado em cinema para vídeo-tape. Era um material chamado Ampex que se usava na época, e trouxe duas caixas com todas as fitas. Voltei ao Brasil também pela TAP graças ao José Laporte, que era o diretor da TAP em Belo Horizonte fez uma permuta com a TV Itacolomi, além dos patrocínios que a direção comercial vendeu, tivesse também o apoio da TAP", explicou.

Müller contra Ozires. O zagueiro celeste não conseguiu o artilheiro alemão. Foto: Imortais do Futebol

Por fim, Luiz Carlos Alves contou que a viagem e a matéria feita sobre o Bayern de Munique trouxe de volta à TV Itacolomi um programa esportivo de muita tradição na televisão mineira. 

"Com este material, a direção da TV Itacolomi resolveu colocar novamente no ar o programa esportivo 'Bola na Área', que estava suspenso. Esta atração era famosa na segunda-feira e tinha uma audiência espetacular. Além das matérias que foram ao ar na televisão, escrevi duas reportagens sobre minha viagem a Alemanha para o jornal Estado de Minas contando aos leitores o que eles veriam na televisão. 

O que aconteceu depois foi algo espetacular. O programa voltou em grande estilo, fantástico. Todo mundo queria saber sobre o Beckenbauer, se ele era simpático ou não... Enfim, mostrei tudo do Bayern na TV e a audiência, se fosse possível medir, certamente seria de 100%. Houve as duas decisões, sendo que, em Belo Horizonte (MG), o Mineirão teve mais de 115 mil pessoas. Foi um verdadeiro sucesso, graças à promoção feita pela Itacolomi que ajudou muito. Óbvio que o Cruzeiro e o Bayern eram os protagonistas, mas quem é não queria ver um Beckenbauer, Muller, o Rummenigge ainda jovem? Foi sensacional", finalizou.

Primeiro jogo: Cruzeiro perde para o Bayern e para a neve 

Reprodução

O Cruzeiro embarcou para Munique e teve o frio como primeiro adversário. Na cidade alemã, os termômetros acusavam menos 10 graus. No antigo Estádio Olímpico de Munique, o verde do gramado se confundia com o branco da neve que tomava conta do campo. 

Sem estar acostumado a jogar na neve, o futebol de alto nível do Cruzeiro, que valorizava o toque de bola e as jogadas em velocidade foi prejudicado pelo estilo de jogo alemão, acostumado a temperaturas e ao campo. 

O time celeste segurou o empate por quase 80 minutos, mas acabou sucumbindo a neve e a qualidade do adversário. Gerd MüllerJupp Kapellmann fizeram os gols do Gigante da Baviera. O resultado dava a chance ao Bayern de ser campeão do mundo pela primeira vez apenas com um empate em Belo Horizonte.

Segundo jogo: Mineirão recebe grande público, mas Cruzeiro não consegue superar o Bayern

No dia 21/12/1976, o Mineirão teve um de seus maiores públicos em toda a história cinquentenária do Gigante da Pampulha. Segundo consta oficialmente, 113.715 pagantes estiveram naquela noite. 

Em campo, estava uma verdadeira seleção de craques. Do lado do Cruzeiro, Raul, Nelinho, Piazza, Jairzinho, Palhinha, Joãozinho e Dirceu Lopes. No campo alemão, Sepp Maier, Franz Beckenbauer, SchwarzenbeckGerd MüllerUli Hoeness e Jupp Kappelmann eram os craques campeões do mundo pela Alemanha em 1974. 

O jogo foi transmitido pela TV Itacolomi, emissora da Rede Tupi de Televisão, que reproduziu a partida para todo o Brasil. Emoção não faltou. Os torcedores assistiram a um espetáculo dos mais sensacionais já protagonizados por dois times na época. 

Palhinha (9) para frente ao goleiro Sepp Maier. Foto: Arquivo/Cruzeiro

Muitos contam que o Cruzeiro entrou em campo desmotivado devido a um desentendimento de jogadores, comissão técnica e direção do Cruzeiro sobre o pagamento da premiação caso o time celeste fosse campeão. A história foi contada pelo ex-goleiro Raul em setembro de 2015, e replicada pelo blog Bayern a Secco.

Histórias a parte, o Cruzeiro não pareceu nenhum pouco desmotivado. Pelo contrário, fez o goleiro alemão Sepp Maier sujar as luvas e fazer defesas sensacionais. Por sua vez, Raul também teve uma atuação digna de premiação, evitando que o Bayern marcasse gols em Belo Horizonte.

A chance mais clara do Cruzeiro foi do atacante Jairzinho, que recebeu um cruzamento da direita, e tocou de cabeça para grande defesa de Maier, a mais bela do jogo. Raul parou as oportunidades de Rummenigge e Torstensson. 

Oportunidades a parte, as redes do Mineirão não balançaram e o título mundial ficou com o Bayern de Munique após o empate sem gols no Mineirão. 

Torcedores arrombaram portões do Mineirão

Um fato que coloca em dúvida o público presente neste jogo é que durante a partida, dois portões do Mineirão foram arrombados por torcedores do Cruzeiro que ficaram de fora do estádio. O número preciso de cruzeirenses na ocasião é um mistério, visto que as catracas também não registraram a quantidade de pessoas que rumaram às arquibancadas do Gigante da Pampulha sem pagar.

Bayern só disputou o Mundial uma vez, embora tenha se classificado em outras duas oportunidades.

Nos anos de 1974 e 1975, o Bayern conquistou o Liga dos Campeões da Europa, mas não disputou o Mundial Interclubes, como deveria fazer. Na primeira oportunidade, deixou que o Atlético de Madrid-ESP, vice-campeão disputasse a decisão. No ano seguinte, não houve datas para o encontro entre os alemães e o Independiente-ARG, o que viabilizou o jogo. Apenas em 1976, o Gigante da Baviera finalmente entrou em campo e foi campeão logo de primeira.

Declaração de Beckenbauer levantou suspeitas de que jogadores do Bayern teriam jogado dopados

O zagueiro Franz Beckenbauer declarou à revista Stern, em maio de 1977, que os jogadores alemães jogam dopados há muitos anos, levantando suspeitas de que ele teriam jogado contra o Cruzeiro estimulados por substâncias proibidas. O caso foi levado a público e comentado pelo então técnico do Cruzeiro Zezé Moreira, no mesmo período para o repórter Sérgio Augusto Carvalho, da revista Placar. Veja a declaração de Moreira.

"Interessante. Aqui sempre acreditamos que a preparação física na Alemanha é excepcional. Isso é uma surpresa para mim. O Bayern tem ótimos jogadores, uma grande equipe, não havia a necessidade de dopar ninguém. É como digo: o doping encurta a vida profissional do jogador. Ele chega ao ponto de saturação e não produz mais nada. O doping é um crime: ele tira todas as qualidades do jogador. Se ele se dopa, dá mais do que pode dar num curto período, mas depois cai e custa a se levantar. É o que pode estar acontecendo com o Bayern". 

Em 2013, Beckenbauer falou novamente sobre o assunto, rechaçando qualquer possibilidade de atletas alemães terem utilizado substâncias "que não soubesse o que era".