Trabalhar com carteira assinada e ter seus direitos assegurados, além de respaldo legal para eventuais situações adversas, são alguns dos grandes desejos de quem se envolve com alguma atividade rentável. Para o cenário do futebol feminino no Brasil, no entanto, esse tipo de aspiração está longe de ser algo palpável e real, o que está relacionado a um panorama ainda mais amplo da modalidade.

Em suma, o futebol feminino no país não é profissional, e isso devido a questões estruturais. Uma atleta, para deixar de ser considerada amadora, precisa ter o registro em carteira de trabalho com seu clube, que, por sua vez, passa a ser profissional caso garanta os benefícios previstos em lei às suas jogadoras. Enquadram-se nessa denominação apenas América-MGSport Santos no contexto brasileiro.

O caminho da profissionalização não é simples, uma vez que demanda de clubes e associações esportivas a criação e manutenção de uma equipe sob regime celetista, em que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) passa a ser uma espécie de cartório desse registro contratual. Segundo o coordenador de futebol feminino da entidade nacional, Marco Aurélio Cunha, é um equívoco pensar que a profissionalização é tarefa essencialmente da CBF.

O que as pessoas confundem, e eu bato muito nessa tecla, é que a CBF não é clube, ela é organizadora de campeonatos da Seleção Brasileira de futebol - feminina principal e base e masculina principal e base. Quem forma jogador, faz jogador e faz time é clube, não é a CBF. Ela faz a sua parte organizando campeonatos melhores a cada ano, e o clubes têm que se inserir nisso, fazendo a sua parte. Não cabe à CBF virar clube”, pontuou Marco à VAVEL Brasil.

A CBF não pode obrigar ninguém a fazer nada. Ela é uma elaboradora de competições. Patrocinadora, inclusive, de competições. O restante é com os clubes, eles que têm que tomar suas iniciativas, de serem ou não profissionais”, declarou.

Marco Aurélio Cunha (Foto: Divulgação/CBF)

Essa vasta demanda, em que as soluções da profissionalização não estão concentradas nas mãos de apenas um agente, dificultam possíveis mudanças. A modalidade se torna profissional à medida que clubes assim o são. Um dos maiores empecilhos, porém, tange a falta de quem decide bancar a conta de investir em um time, com todas as estruturas necessárias para a prática digna - e reconhecida - da modalidade.

A engrenagem do futebol passa também por outros interlocutores, como empresas de comunicação que detenham direitos de transmissão de campeonatos (por meio da compra desse direito), patrocinadores e, principalmente, consumidores da modalidade - o que é fortemente auxiliado por divulgação e alastramento de assuntos pertinentes à modalidade.

Alguns esportes são praticados em espaços menores, têm custo menor, menos jogadores. O futebol é jogado por 11 atletas, um elenco de 25, 30 pessoas, uma comissão técnica de 10, 15. Tudo isso gera um custo muito elevado e, evidentemente, esse custo tem que ser abatido por aquilo que retorna de publicidade, de bilhetes, de TV’s pagando pelo espetáculo. Então enquanto a gente não atingir esse nível de ocupação de espaço, de desenvolvimento esportivo, de interesse da população, ainda temos que aceitar que essa implantação do futebol está em transição”, complementou Marco Aurélio.

'Não podemos comparar'

Enquanto existir um contraste evidente entre o universo do futebol feminino e o do masculino, abordagens tenderão a estabelecer comparações, uma vez que enquanto um movimenta cifras milionárias, o outro ainda corre atrás de garantias básicas. Para a treinadora da Seleção Brasileira Feminina, Emily Lima, no entanto, cada um possui aspectos únicos, o que impede uma padronização do modo de vê-los.

O futebol feminino está iniciando, evoluindo. Apesar de achar que a obrigatoriedade que os clubes masculinos têm agora de ter uma equipe feminina não é a melhor solução, temos que aproveitar. Mas isso não vai tornar profissional de uma hora para outra. Não podemos ficar comparando o futebol feminino com o masculino. Cada um tem suas especificidades”, comentou Emily.

Foto: Rafael Ribeiro/CBF

A obrigatoriedade a que se referiu a treinadora da Seleção diz respeito à exigência da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) de que os clubes só terão direito a disputar a Copa Libertadores da América, principal competição interclubes do continente, caso tenham uma equipe feminina de futebol ou ainda associação com alguma existente. Essa medida começará a valer a partir de 2019.

Como citado, apenas Sport, América-MG e Santos são equipes femininas consideradas realmente profissionais, ainda que alguns outros clubes ofereçam boas condições às suas atletas, como lugares fixos de treinos, comissões técnicas bem estruturadas e organização em viagens. O que tornam essas três agremiações profissionais perante a lei é exatamente o fator da carteira assinada.

Insegurança ao fim da temporada

Não é difícil encontrar alguma atleta que esteja jogando pela primeira vez em uma equipe profissional, como Alline Calandrini, zagueira do Santos. Ela contou sobre como acontece dentro da maioria dos clubes, em que um contrato informal é estabelecido.

Alline está no Santos há nove anos (Foto: Divulgação/Santos)

Existe um ‘contrato de gaveta’, em que tem algo escrito que você pertence ao clube X durante um ano. É um contrato que não vale nada. Então todo ano você fica apreensiva com o que acontecerá no fim da temporada. O clube pode te mandar embora do nada, assim como também posso sair”, revelou.

Para além do pagamento de um salário, a carteira assinada dá garantias ao funcionário, seja ele dos gramados ou não. “Fico feliz por eu ter carteira assinada. Antes de ter, nem eu sabia os benefícios que eu teria. Fiquei tantos anos jogando/trabalhando sem direitos trabalhistas, que não entendia o que estava perdendo. Por isso tem o outro lado, que é a realidade. A grande maioria dos clubes não tem. Dificilmente tem um contrato normal. Outros clubes tem apenas a limitação de um ou dois campeonatos e, em seguida, a atleta não sabe o que fará na próxima temporada”, abordou Alline.

Essa incerteza que circunda a própria prática esportiva, citada pela zagueira santista, é uma das questões mais sensíveis em torno da não profissionalização dos clubes. O caráter imprevisível da informalidade de contratos e a ausência de respaldos colocam algumas interrogações nas cabeças das atletas.

Calendários incoerentes

Somam-se a isso os calendários das equipes de futebol feminino no Brasil, que não contemplam todo o ano. Por isso, muitas jogadoras recebem enquanto competem e ficam sem remuneração entre uma temporada e outra. Fora o salário, ou além dele, tem ainda o fato de que um longo período sem competição compromete o ritmo das próprias atletas, como comentou o treinador do SportJonas Urias.

Vejo a profissionalização como um passo importante no desenvolvimento da modalidade. Mas não vejo como a solução de todos os problemas. Ao meu ver, existem medidas mais importantes que devem ser atentadas, como por exemplo a criação de um calendário competitivo que preencha o ano todo. De que adianta termos atletas profissionais, que não têm o que competir de julho à dezembro?”, questionou o comandante da equipe pernambucana.

Foto: Reprodução/Sport

No caso de campeonatos femininos estaduais como os de Pernambuco e Distrito Federal, os torneios regionais já aconteceram, ao passo que em outros estados, como Minas Gerais, a edição de 2017 começa no próximo fim de semana.

No futebol masculino, as agendas dos clubes são praticamente padronizadas. Os estaduais geralmente acontecem por inteiro no primeiro semestre (Amazonas, Maranhão, Amapá, Rondônia, Piauí, Tocantins, Pernambuco e Roraima tiveram seus estaduais estendidos em 2017 com agendas diferentes dos demais), seguidos pelo Brasileirão, que finaliza a temporada. Torneios continentais e Copa do Brasil intercalam o Campeonato Brasileiro. Já o futebol feminino contempla calendários bastante distintos.

O maior empecilho é a ausência de um calendário competitivo anual. Isso inviabiliza a formação de uma equipe profissional. O clube criaria vínculos empregatícios com profissionais que não têm função. Perde o sentido”, destacou Jonas.

Amor pelo esporte

A equipe feminina do América-MG é recente quanto à associação com o Coelho, mas o projeto em si existe há mais tempo. Antes das meninas defenderem a camisa alviverde, o time pertencia ao Santa Cruz, instituição esportiva da capital mineira. Contudo, a realidade da equipe refletia exatamente pontos da não profissionalização, a começar pela inexistência de salários. Suficiente ou não, fato é que após serem assumidas pelo América, as meninas passaram a receber, bem como tiveram suas carteiras de trabalho assinadas.

A junção com o América representou uma situação que ainda não tinha sido vivida pelas jogadoras, no que consiste, principalmente, a questão  dos direitos trabalhistas. Meia-atacante do América-MG, Tábata Vieira está na equipe desde quando o time pertencia ao Santa Cruz e relembrou o que a impulsionava em meio a circunstâncias que andavam na contramão do ideal.

Tábata foi a artilheira do América no último Brasileiro (Foto: Isabelly Morais/VAVEL Brasil)

O que me motivou a jogar em uma equipe  com o mínimo de condições, como era o Santa Cruz, é o amor pelo esporte [futebol] e a esperança de que algum dia teremos o merecido reconhecimento e as mínimas condições de trabalho”, apontou.

"Jogar como profissionais"

Jogar como profissional mesmo não sendo considerada uma - pelo menos legalmente. Essa é a visão de Jéssica Lima, volante do Rio Preto, clube que caiu na semifinal da Série A1 do Brasileiro Feminino para o Corinthians. No caso da sua equipe, existe uma parceria com a prefeitura de São José do Rio Preto, que arca com os salários. Pela ligação com o poder público, o time está sujeito a ser influenciado por variáveis como, por exemplo, trocas de mandato de prefeitos.

Apesar de serem regularmente remuneradas, as jogadoras do Rio Preto não trabalham sob regime celetista. Segundo Jéssica, ainda que a elas não sejam disponibilizados tais direitos, em campo precisam se dedicar como profissionais.

Jéssica (dir) é uma das atletas mais experientes do Rio Preto (Foto: Ferdinando Ramos/ALLSPORTS)

Você entra jogando futebol feminino sabendo que é assim [modalidade amadora], e usar disso para não jogar… não tem como não jogar. Como uma das mais velhas da equipe, sempre digo para as meninas que independente do que a gente faça na nossa vida, temos que fazer bem feito, temos que nos entregar, vestir a camisa. ‘Ah, mas não tem valorização’. E o que a gente pode fazer? Perder? Essa é a melhor saída? Não, só vai piorar”, indagou.

Infelizmente, no Brasil você precisa ganhar as coisas para cobrar algo, então é nesse sentido que as meninas entendem, que, mesmo sem os direitos que seriam ideais e o certo, a gente não pode usar disso para não jogar. Por mais que o futebol não nos trate como profissional, precisamos jogar como profissionais”, completou a jogadora.

Segurança talvez seja uma das palavras que melhor se encaixe no que as atletas de futebol buscam dentro da prática da modalidade, o que pode ser efetivado com a profissionalização. “A gente não tem contrato profissional, e realmente isso é uma dificuldade, porque nós não temos fundo de garantia, não temos férias. Recolhemos 11%, o que nos dá direito a aposentadoria e auxílio-doença, mas obviamente que é difícil quando pararmos, porque não temos uma segurança”, afirmou Jéssica.

Respaldo legal

Esse sentimento que ainda acomete a maioria das jogadoras brasileiras passou a ser uma tranquilidade para Regiane Santos, meia do Sport, que é uma das três equipes que mantém suas atletas com carteira assinada. Como um trabalhador qualquer que viva nesse regime, mesmo que de imediato esteja ao seu alcance apenas o salário, o alívio se sustenta em saber que existem benefícios.

A situação do Sport me dá tranquilidade em saber que vou ter os respaldos lá na frente. Eu já trabalhei de carteira assinada [não no futebol, já que Sport é sua primeira equipe dessa forma], então meus benefícios se tornam bem mais fáceis. Fico tranquila, porque sei que que quando chegar no fim do ano, vou ter meu 13°, se for renovado o contrato, vou ter minhas férias, e se eu sair vou ter direitos como seguro desemprego, como outros possíveis, além de estar contribuindo para uma aposentadoria lá na frente”, realçou.

Um detalhe importante é que, da mesma forma que a carteira assinada pode não ser garantia intocável de direitos em alguns casos, o contrário também acontece: há exemplos de clubes não profissionais que funcionam bem. O fato é que a profissionalização pode ser um caminho para dar um respaldo maior a jogadoras de futebol, uma vez que ter uma relação de trabalho registrada em contrato serve como proteção a eventuais transtornos.

VAVEL Logo
Sobre o autor