Em carta emocionante, Rashford relembra infância e alerta governo britânico sobre fome infantil

Atacante falou sobre as dificuldades que enfrentou e pediu aos políticos ingleses que não cortem o voucher alimentação de famílias carentes

Em carta emocionante, Rashford relembra infância e alerta governo britânico sobre fome infantil
Foto: Reprodução/Marcus Rashford
josemariosantos
Por José Mário Santos

No último domingo (14), o atacante Rashford divulgou uma carta aberta ao parlamento britânico. O atleta de 24 anos relembrou as dificuldades da sua infância e falou sobre a situação dos pobres na Inglaterra. O jogador do Manchester United pediu para o governo intensificar a luta contra a fome no país e não cancelar o vale alimentação de famílias carentes.

O voucher de alimentação foi criado para garantir as refeições das crianças que eram feitas na escola. Com o fechamento dos colégios, cerca de 1,3 milhão de estudantes foram inscritos no programa, porém um quarto ainda não recebeu o auxílio, segundo Rashford.

O jogador, junto com a instituição de caridade FareShare, já arrecadou cerca de 20 milhões de dólares para ajudar famílias carentes. O atacante faz um apelo ao parlamento para manter o vale-alimentação durante as férias de verão devido ao desemprego no país.

"O governo toma a posição de que é preciso fazer tudo' pela economia. Eu estou pedindo à vocês hoje que estendam esse mesmo pensamento para proteger todas as crianças vulneráveis por toda a Inglaterra. Eu encorajo você a ouvir os apelos delas e encontrar sua humanidade. Por favor, reconsiderem a decisão de cancelar o voucher de comida durante o perídio de férias de verão e garantam a extensão do benefício."

Confira a carta aberta de Rashford na íntegra

Na semana em que deveria ser aberta a UEFA EURO 2020, eu gostaria de refletir e retornar à 27 de maio de 2016, quando fiquei de pé no meio do Estádio da Luz em Sunderland, no momento em que quebrei o recorde de mais jovem jogador a marcar em seu jogo de estreia pela seleção principal. Olhei aquela multidão balançando suas bandeiras e batendo o punho nos três leões em suas camisas. Eu estava sobrecarregado de orgulho não só por mim mesmo, mas por todos aqueles que me ajudaram a alcançar meu sonho de jogar pela seleção da Inglaterra.

Entendam: Sem a gentileza e a generosidade de toda a comunidade que eu tive ao meu redor, não haveria o Marcus Rashford que você vê hoje: Um negro de 22 anos com sorte o bastante para fazer uma carreira jogando um jogo que amo.

A minha história até aqui é muito familiar para famílias da Inglaterra: Minha mãe trabalhava dia e noite, ganhando o suficiente para que tivéssemos sempre uma boa comida na mesa. Mas isso não era o suficiente. O sistema não foi construído para que famílias como a minha cheguem a ter sucesso, independentemente do quão duro a minha mãe trabalhasse.

Como uma família, nós confiamos em cafés da manhã nos clubes, refeições grátis em escolas, e ações de gentileza de vizinhos e treinadores. Bancos de alimentos, e sopas de cozinha não nos eram permitidos; Eu me lembro muito claramente das nossas visitas para Northern Moor para pegar nossas refeições de natal todo ano. E só agora eu entendo de verdade a enormidade dos sacrifícios que a minha mãe fez me mandando pra viver em incertezas aos 11 anos, uma decisão que mãe nenhuma tomaria com o fôlego leve.

Esse verão deveria ser cheio de orgulho novamente, com pais e filhos ondulando suas bandeiras uma vez mais, mas na realidade, o estádio de Wembley poderia ser preenchido mais que o dobro com crianças que estão sem se alimentar desde o Lockdown, e as quais suas famílias não tem acesso à comida. (cerca de 200.000 crianças, de acordo com as fundações de combate à fome).

Com seus estômagos roncando, eu me pergunto se essas 200.000 crianças algum dia terão orgulho do país para vestir a camisa da seleção nacional um dia e cantar o hino, sentadas nas arquibancadas.

Dez anos atrás, eu poderia estar dentre uma dessas crianças, e vocês nunca poderiam ouvir a minha voz, e ver essa minha determinação em me tornar parte da solução.

Como muitos de vocês sabem, o lockdown atingiu as escolas e elas foram temporariamente fechadas. Eu fiz uma parceria com a Fare Share UK em distribuição de comida para ajudar a preencher algumas dessas refeições gratuitas escolares suspensas. Enquanto a campanha está atualmente bancando 3 milhões de refeições por semana aos mais vulneráveis no Reino Unido, eu reconheço que não é o suficiente.

Isso não é sobre política; isso é sobre humanidade. Olhando para nós mesmos no espelho, sentimos que estamos fazendo tudo que podemos para proteger aqueles que não podem se proteger sozinhos. Deixem as afiliações políticas de lado, por que não podemos concordar que criança nenhuma deveria ir para a cama com fome?

A pobreza e fome na Inglaterra é uma pandemia que pode arrasar gerações se não corrigirmos para o curso correto agora. Cerca de 1.3 milhões de crianças estão registradas em escolas para alimentação gratuita, um quarto dessas crianças não teve nenhum tipo de suporte desde o fechamento das escolas.

Confiamos nos pais, pais esses que viram seus trabalhos se esvaírem durante a pandemia de COVID-19. E que buscam professores substitutos durante o lockdown, esperando que suas crianças estejam focadas o suficiente para aprender, com uma pequena percentagem de suas necessidades nutricionais durante esse período.

É uma falha de sistema, e sem educação, vamos estimular esse ciclo de dificuldades a continuar. Para entender essa pandemia, de 2018 a 2019, 9 de cada 30 crianças em qualquer sala de aula, estão vivendo em pobreza no Reino Unido. E é esperado que isso suba em mais de 1 milhão até 2022. Na Inglaterra hoje, 45% das crianças negras e/ou grupos de minoria étnica, estão na pobreza. Isso é a Inglaterra em 2020...

Eu estou pedindo para vocês escutarem a histórias dos pais dessas crianças como eu, que recebi milhares de relatos de pessoas lutando. Eu escutei pais me dizerem que eles estavam lutando contra a depressão, incapazes de dormir, doentes e preocupados sobre como elas vão ajudar suas famílias, perdendo seus empregos de forma inesperada. Diretores que pessoalmente estão bancando custos de pacotes de comida para familiares vulneráveis depois que o cartão corporativo da escola ficou zerado. Mães que não podem pagar custos de eletricidade alta, e comidas durante o lockdown, e pais que estão sacrificando a própria alimentação para os seus filhos. Em 2020 isso não deveria existir ,ainda que um ou outro.

Eu li tweets nas últimas semanas, onde as pessoas culpam os pais por terem filhos se eles não podem bancar'. Esses mesmos dedos que apontam para essas pessoas, poderiam ser apontados para a minha mãe, mas mesmo assim, eu cresci num lar de muito carinho e amor.

O homem que vocês veem na sua frente hoje é um produto do amor e do cuidado dela. Eu tenho amigos que conheci no ensino médio que nunca sequer experimentaram uma pequena dose do amor que eu tive da minha mãe: Um único ente que sacrificaria tudo que tem pela nossa felicidade. ESSES são os pais que nós estamos falando. Pais que trabalham cada hora do dia para ter o salário mínimo, muitos deles trabalhando no setor hospitaleiro, um setor que está completamente fechado por meses.

Durante essa pandemia, pessoas estão existindo pelo fio da navalha: Uma conta atrasada causa um efeito em espiral, a ansiedade, o estresse de saber que aquela pobreza é o principal influenciador daquelas crianças precisarem de cuidados. Um sistema que é desenhado para falhar com famílias de baixa renda. Vocês sabem quanta coragem precisa para um homem adulto dizer: 'eu não consigo lidar com isso' ou 'Eu não consigo ajudar a minha família'? Homens, mulheres, cuidadores, estão clamando por nossa ajuda, e nós não estamos escutando.

Também recebi um tweet de um membro do Parlamento que me disse "É por isso que há um sistema de benefício'. Tenha certeza, eu estou completamente ciente do sistema universal de crédito e também estou completamente ciente que a maioria das famílias beneficiárias estão experimentando um atraso de 5 semanas. Crédito Universal não é simplesmente a solução à curto prazo. Também sei que estamos falando de pessoas em que há um limite de 2 crianças por família, coisa que não seria possível por exemplo pra minha mãe, que  teria que cobrir o custo de dois dos cinco filhos dela. Em Abril de 2020, 2.1 milhões de pessoas solicitaram benefícios relacionados à desemprego. Isso é um aumento de 850.000 desde março de 2020. Estamos nos aproximando do fim das licenças e o inicio de um período de desemprego em massa, e o problema das crianças na pobreza ficará muito pior.

Pais como os meus poderiam contar com clubes de base durante as férias de verão, providenciando um espaço seguro e pelo menos uma refeição, enquanto eles trabalham. Hoje, os pais não têm sequer isso como opção. De frente para o desemprego, pais como os meus poderiam ir às agências de emprego, para encontrar numa segunda-feira pela manhã um novo emprego, para ajudar as suas famílias. Hoje, não há mais empregos.

Como homem negro de uma família de baixa renda de Wythenshawe, Manchestes, eu poderia ser só uma estatística. No entanto, graças as ações altruístas da minha mãe, da minha família, meus vizinhos e meus treinadores, as únicas estatísticas que me associam são os gols, os jogos e as convocações. Eu, minha família comunidade estaríamos praticando uma injustiça se hoje eu não estivesse aqui com minha voz e minha plataforma pedindo pela sua ajuda.

O governo toma a posição de que é preciso fazer tudo' pela economia. Eu estou pedindo à vocês hoje que estendam esse mesmo pensamento para proteger todas as crianças vulneráveis por toda a Inglaterra. Eu encorajo você a ouvir os apelos delas e encontrar sua humanidade. Por favor, reconsiderem a decisão de cancelar o voucher de comida durante o perídio de férias de verão e garantam a extensão do benefício.

Isso é a Inglaterra em 2020. E isso é uma questão que necessita de ajuda urgente. Por favor, enquanto os olhos da nação estão em vocês, façam as suas vezes e protejam as vidas de algumas das nossas mais vulneráveis prioridades."